ALEIJADINHO


As principais obras-primas do
mestre barroco brasileiro floresceram quando se manifestavam no escultor os
rigores de uma grave enfermidade.

Madrugada em Vila Rica, nas Minas
Gerais. Pelas ruas desertas, o escravo avança devagar, vergado pelo peso do
homem que carrega nas costas. A cena repete-se todos os dias: encoberto por uma
sobrecasaca azul de pano grosso, Antônio Francisco Lisboa sobe aos ombros do
negro para ser conduzido até a capela. Sai de lá apenas à noite, quando a cidade
está adormecida. Não tolera que o vejam.
No interior da igreja, ordena que
o servo lhe amarre o cinzel ao pulso mutilado, em cuja extremidade restam apenas
o polegar e o indicador. Esforçando-se por esquecer as dores excruciantes e a
vergonha de sua figura repugnante, o artista conhecido como Aleijadinho esculpe
as mais belas imagens produzidas pela arte brasileira.
A enfermidade que o deforma
progressivamente manifesta seus primeiros sinais por volta de 1775, quando o
artista passa já dos 40 anos. Filho de um arquiteto português com sua escrava,
ele é mulato, baixo e gordo. A cabeça enorme, equilibra-se sobre um pescoço
quase inexistente. Alegre e comunicativo, dissipa em bailes e festas o que ganha
esculpindo estátuas ou projetando igrejas.

A lepra azeda sua vida. Os dedos
caem, os pés deformam-se, os membros atrofiam-se, a pele cobre-se de ulcerações.
Vexado, o artista cobre o corpo com capotões e capuzes. A alegria é sepultada
sob um mau humor inabalável. A única coisa que floresce com a doença é a arte: o
escultor apenas competente antes dá vazão à revolta interior cunhando obras
primas.
Um dia, esgueira-se até a casa do
governador Bernardo José de Lorena. Ao chegar, é recebido pelas zombarias do
ajudante-de-ordens do administrador, José Romão:
- Feio homem! Feio homem!
O artista dá meia volta, mas é
retido pelo governador. Lorena quer uma imagem de São Jorge com articulações nos
joelhos, para desfilar a cavalo na procissão de Corpus Christi. Os olhos de
Aleijadinho brilham: terá sua vingança. Esculpe o santo com a cara de Romão. No
dia do cortejo, o ajudante vira motivo de chacote:
- O São Jorge que ali vai
Com ares de santarrã
Não é São Jorge nem nada
É o coronel Zé Romão, escarnece o
povo.
Aleijadinho trabalha até a idade
aproximada de 80 anos, quando cego e lacerado, permanece dois anos sem sair do
catre, à espera da morte. Duas décadas antes, em 1796, escondera-se numa
carruagem para percorrer 60 quilômetros até Congonhas do Campo. Ergue lá o
conjunto de Bom Jesus de Matozinhos. No caminho que sobe até a igreja, semeia 66
imagens que reproduzem os Passos da Cruz. No adro da capela, dispõe 12 profetas
gritando a palavra de Deus. Depois de quase 10 anos, dá por concluído o
monumento máximo do barroco brasileiro.

Depois de dois anos rolando, aos
gritos, sobre um estrado de madeira, com um dos lados do corpo "horrivelmente
chagado", o Aleijadinho foi, enfim, poupado da agonia no dia 18 de novembro de
1814.

ALEIJADINHO, HERÓI NACIONAL
Até
o início do século XX, o mineiro de Vila Rica não
passava, para os críticos, de mais um artesão
habilidoso do século XVIII empenhado em produzir
na colônia uma estatuária próxima à de seus
contemporâneos na metrópole. A partir da década de
1920, seu nome deixa a lista dos trabalhadores
manuais para ganhar o status de artista. Artista,
não. Antônio Francisco Lisboa subiu logo à
categoria de gênio. Sem escalas. Por obra e graça
do movimento modernista brasileiro. Foi exatamente
em 1920 que os leitores da Revista do Brasil
publicação criada em 1916 (e publicada até 1990)
que debatia os principais temas políticos e
culturais da nação se depararam com quatro artigos
assinados pelo escritor e crítico Mário de Andrade
e intitulados Arte Religiosa no Brasil.
O
modernista empenhava-se em criar uma identidade
cultural verde e amarela e as peças em pedra-sabão
feitas por Aleijadinho encaixaram-se como milagre
na vaga:
-"Toda a Minas Gerais está tão impregnada de sua
genialidade que se tem a impressão de que tudo
nela foi criado por ele só".
Dez
anos depois, o Sphan, Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, consolidava o
escultor como o pioneiro na inauguração de uma
expressividade local. Em 1964, o então curador do
Museu do Louvre, em Paris, Germain Bazin,
considerado um dos grandes responsáveis por
difundir a arte colonial brasileira no exterior.
"Aleijadinho, o leproso construtor de catedrais",
de autoria do escritor suíço Patrick Straumann, é
a primeira obra sobre o artista mais emblemático
do barroco brasileiro publicada em francês nos
últimos 42 anos. A última havia sido uma biografia
realizada pelo historiador de arte francês Germain
Bazin.
“Tenho certamente um olhar europeu sobre o
assunto. Mas não escrevi esse livro para divulgar
na Europa a vida e a obra injustamente
desconhecida de um artista brasileiro. Fiquei
impressionado pela arte de Aleijadinho e acho que
ele é um escultor fascinante”, diz Straumann. “Ele
é um artista de uma importância mundial.”

OBRAS
Como ocorre com outros artistas coloniais, a
atribuição de obras ao Aleijadinho é dificultada
pelo fato dos artistas da época não assinarem suas
obras e pela escassez de fontes documentais. Em
geral os documentos como contratos e recibos
acordados entre as irmandades religiosas e os
artistas são as fontes mais seguras para a
atribuição de autorias. Também outros documentos,
como a “Memória” do vereador de Mariana transcrito
por Bretas e a tradição oral são elementos úteis.
Por último, comparações estilísticas entre as
obras conhecidas com obras de autoria desconhecida
podem ser usadas para atribuir uma determinada
obra a um artista.

LISTA DE OBRAS
Sabará
Igreja de Nossa Senhora do Carmo: o cancelo, coro
sustentado por Atlantes, púlpitos, esculturas em
pedra sabão sobre a porta principal e frontão
Matriz de Nossa Senhora da Conceição: grade de
madeira do batistério
Museu do Ouro: imagem de Santana Mestra
Ouro
Preto
Hospício da Terra Santa – Projeto e execução do
chafariz em esteatita, situado nos fundos do
monastério;
Palácio dos Governadores – Risco em sagüínea do
chafariz interno (1752); feito de uma mesa de
jacarandá preto; dois bancos de encosto e dois
bancos torneados (1761), peças não identificadas;
Chafariz do Pissarrão – Projeto do chafariz
situado no Alto da Cruz, antiga rua Larga,
proximidade da Igreja de Santa Ifigênia (1761);
busto de Afrodite no remate do frontão;
Igreja de Nossa Senhora do Carmo – Modificação do
projeto original (1770); altares colaterais de
Nossa Senhora da Piedade (1807) e de São João
Batista (1809); acréscimo dos camarins e
guarda-pós dos altares de Santa Madalena e Santa
Luzia;
Casa do Açougue Público – Projeto e especificação
do açougue (1771), obra demolida em 1797;
Igreja de São Francisco de Assis – Esculturas dos
tambores ogivais dos púlpitos, em esteatita,
representando episódios bíblicos (1772); barrete
da capela-mor (1773–74); projeto atual da portada
(1774–75); risco da tribuna do altar-mor
(1778–79); feitio das pedras Dara (1789); retábulo
da capela-mor (1790–94) (elaborado com a
colaboração dos entalhadores Henrique Gomes de
Brito, Luís Ferreira da Silva e Faustino da Silva
Correia); projeto de dois altares colaterais
consagrados a São Lúcio e Santa Bona (executados
com alterações por Vicente Alves da Costa, em
1829);
Igreja de São José – Projeto do retábulo da
capela-mor (1773, posteriormente alterado);
modificações produzidas no risco da fachada
(1772);
Igreja Nossa Senhora das Mercês e Perdões – Risco
da primitiva capela-mor; revisão do projeto e
verificação final da obra (1775–78), que foi
depois demolida em 1805.
Nova
Lima
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Nova
Lima — Altar-mor, altares laterais, púlpitos, coro
e batistério, procedentes da Fazenda Jaguara,
doação de George Chalmers, antigo superintendente
da Mina de Morro Velho, quando adquiriu a fazenda.
Tiradentes
Matriz de Santo Antônio: risco do frontispício e
das grades do corpo da igreja.
São
João del-Rei
Igreja de São Francisco de Assis: risco dos
altares colaterais; risco da portada; imagem de
São João Evangelista
Igreja Nossa Senhora do Carmo: risco e execução da
maior parte das esculturas da portada
Santuário do Bom Jesus de Matosinhos: imagens dos
Passos da Paixão nas capelas; estátuas dos
Profetas no adro da igreja; caixa do órgão
(desaparecida); relicários.
Texto pesquisado e desenvolvido
por
ROSANE VOLPATTO

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