ANHANGÁ, A MÃE DO MATO
Do tupi-guarani, "anhang",
significando:
ang - ALMA
nhã - CORRER; ou seja,
"uma alma que corre".
O Anhangá é portanto, um
espírito, e como tal,
"invisível" que vive e
corre nas matas,
protegendo os animais e
seus filhotes.
O Padre Tastevin não
discrepa da opinião
clássica quanto à
etimologia do vocábulo:
- Anhangá - etim. - Anhu, só alma; espírito
maligno. Designava também as almas dos finados
como consta da expressão - Anhangá y yora, viúva.
i.e. o marido dela é Anhangá.
O Anhangá pode apresentar-se sob a
forma de um pássaro
(galinha do mato), rato
(soiá), morcego, macaco
(jurupá). É também
identificado como um
veado branco com olhos
de fogo com uma cruz no
meio da testa, dotado de
espírito andarilho, com
a missão de proteger os
animaizinhos nos prados,
mas principalmente as
fêmeas prenhas. Se bem
que seja essa sua
aparição mais comum,
encontram-se no
fabulário da região
norte diferentes formas
de sua presença:
Mira-anhangá,
Tatu-anhangá,
Suasu-anhangá,
Tapiira-anhangá, ou
seja, visagem de gente,
de tatu, de veado e de
boi.
Em qualquer caso e
qualquer que seja visto,
ouvido ou pressentido, o
Anhangá traz para aquele
que o vê, ouve ou
pressente certo
prenúncio de desgraça, e
os lugares que se
conhecem como
freqüentados por ele são
mal-assombrados.

Nas cartas dos padres
José de Anchieta, Manuel
da Nóbrega e Fernão
Cardim fala-se de
Anhanga como de um
espírito malfazejo,
temido pelos indígenas.
O alemão Hans Staden
chamou-o Ingange. O
franciscano André Thevet
registrou-o também. São
todos do século XVI.
Thevet (1558) notou que
o Anhangá não tinha
forma positiva. O certo
era atormentar os
viventes. Jean de Léry,
o huguenote macio e
doce, anotou o seu
complicado Aygnhan,
irmão de Agnan de Thevet,
atormentador das gentes
tupinambás. Até a
lembrança do Aygnhan os
fazia sofrer.
Onde a mesma assobia, a
caça desaparece como por
encanto.
Existem caçadores
espertos que com ela
estabelecem um trato,
tão logo reconhecem seu
assobio:
-"Minha comadre, me dê
uma boa caça, que eu lhe
dou como presente um
pouco de tabaco." Se a
pessoa é atendida, deve
cortar uma vara, rachar
a ponta da mesma, nela
introduzir o tabaco,
folhas de abade e
fósforo. Espetar então a
vara nas proximidades em
que a caça foi abatida,
dizendo:
-"Comadre, aí está o
tabaco prometido".
Todos dizem que quando
alguém se dispõe a
procurar o ofertório,
não o encontra mais. Age
por intermédio de
"tratos", sendo um para
cada pedido. Seu assobio
se assemelha a de uma
anta e o "remorso"
somente se apresenta com
esse assobio. Se alguém
fizer pouco caso da
Anhangá, apanha na hora,
sem saber de quem, como
se fosse atacado por
alguma pessoa armada de
um pedaço de pau.
Para evitá-la, deve-se
acender foguetes com
duas ou três cargas,
antes de entrar na mata.
Outra maneira, é a
defumação com a castanha
de cajú ou ainda, a
maneira mais fácil, é
fazer uma cruz de
madeira encontrada na
própria mata.
O caçador desprevenido
que que aproximar-se o
anhangá achando que é um
veado e tentar abatê-lo,
terá uma desagradável
surpresa, pois expelindo
fogo pelos olhos, o
atacará com
incontrolável fúria,
despertando um pavor de
morte.

A LENDA
(colhida por Antônio
Brandão de Amorim)
Antigamente, contam aqui
mesmo, o veado começou
comendo a roça de toda a
gente.
Ninguém via nada no
caminho, só havia maniva
quedrada.

Aqui, ali, além, era
assim mesmo, ninguém
sabia o que estragava as
roças.
Roça já queria acabar,
contam, quando um homem
foi espiar a roça dele:
levou zarabatana para
flechar com ela.
Ele, contam, trepou em
cima, já de tarde,
quando o sol sumiu, viu
aparecer um veado na
beira da roça.
Mesmo diante de seus
olhos, contam, viu esse
veado virar numa velha,
pegar imediatamente num
uaturá, começar a tirar
a folha de maniva!
O homem, contam, estava
quieto, não fez mais do
que ouvir essa velha
dizer:
-Enredo é mesmo feio,
contam, contra mim.
Todos me querem matar,
por causa da minha
maniva. Eu os deixei
bolir comigo, então
esconderei no mesmo
instante minha planta
para eles não comerem
mais sua raiz.
O homem, ouviu bem o que
esse veado disse e, no
mesmo instante,
desapareceu pelo meio do
mato.
O homem desceu logo, foi
para casa.
Ele não disse nada a
ninguém.
Outros donos da roça
espiaram também; e eles
contam também apareceu,
depois virou num velho,
um veado.
Todos os que viram o
veado virar gente, não
contaram em casa.
Assim, contam, a roça
deles foi acabando.
Um dia chegaram debaixo
dois moços, a eles
contaram logo a respeito
das roças.
Os moços disseram:
- Amanhã havemos de ir
espiar as roças.
- Eu ficarei aqui, esse
meu companheiro irá para
acolá.
Assim eles fizeram.
Quando já de tarde, cada
um deles foi para as
roças.
Só já de noite, contam,
apareceu a veada, o moço
a flechou logo de curabi,
matou-a imediatamente.
A esse outro moço também
apareceu aquele veado,
ele a matou
imediatamente.
Nessa noite, contam,
eles espiaram ainda para
ver se havia outra coisa
que comesse a roça.
Amanheceu e nada
apareceu; eles levaram
logo sua embira para
casa, quando ali
chegaram disseram:
-Aqui está quem
estragava a roça de
vocês.
- Agora é bom vocês
comerem com maniçoba.
Assim mesmo o outro moço
disse ao outro dono da
roça.
Como, contam, a carne
fresca é sem gosto, os
donos das roças
moquearam os veados para
comer com maniçoba.
Mesmo dentro de casa,
contam, eles moquearam.
Quando já de manhã,
contam, foram biscar do
moquém para por com
maniçoba, os quartos já
estavam todos de gente
sobre o moquém!
Cabeça de gente sobre
eles estava, mostrava
todos os dentes como
quem se ri!
Na outra casa aconteceu
o mesmo.
Num instante eles
jogaram no rio toda a
moqueada.
Queriam esquecer-se,
contam, desse agouro;
não podiam fazê-lo,
porque cheiravam em casa
pixé de carne de gente.
Já então, contam, eles
fizeram outra casa para
se mudar.
Então já não cheiravam
pixé de gente.
Duas luas depois,
contam, apareceram do
Papuri pessoas que
procuravam seu avô e a
mulher dele que tinham
dali sumido.
Então essa gente soube
que aqueles dois veados
foi quem estragou a roça
deles.
Assim, contam, lhes
sucedeu, por isso hoje
em dia a gente não
moqueia mais veado
dentro de casa.

O Padre Tastevin
recolheu uma outra
lenda, mais ou menos
semelhante. Os negros Ba
Kamba contam que um
caçador encontrou dois
antílopes que estragavam
sua roça, e matou a
fêmea e levou-a para a
aldeia.
Apesar de morta, esfolada, preparada, levada para
o fogo, a antílope conservava a voz humana e
perguntou para onde a levam. Assando, ainda fala.
Quem comeu da antílope morreu. Sacudiram o resto
no mato. Imediatamente o corpo se recompôs e a
antílope, sã e completa, reganhou, numa carreira
veloz, a floresta.

Karl Von del Stein
lembra que os Bororos
não matavam nem comiam o
veado-campeiro, o
Suçuapara (Cervus
campestris). A crença
geral é que um veado,
saindo do mato, anuncia
um acontecimento
grave...se não for
abatido com um tiro
certeiro.
Hans Staden, por sua
vez, também descreve o
mesmo tipo de fenômeno:
"(...) Dormem em redes
penduradas, a que dão o
nome de ini (...)
Durante a noite, uma
fogueira permanece acesa
ao lado da rede. E,
mesmo para fazer suas
necessidades, os
selvagens não gostam de
sair das cabanas sem
levar uma tocha, tamanho
o medo que sentem do
demônio chamado por eles
de Anhangá, que
acreditam ver com
freqüência. (...)"

Já André Thevet, conta:
"(...) estes pobres americanos
deparam muitas vezes com um determinado espírito que ora
assume uma forma, ora outra. Chama-se Anhã (nota: no
original Agnan). Este demônio persegue-os
frequentemente, de dia e de noite, atormentando não só
as almas, mas também - e especialmente - os corpos. Anhã
castiga e machuca excessivamente os índios, fazendo com
que por vezes se posa ouvi-los gritando medonhamente e
suplicando a algum cristão que porventura se encontre
por perto: "Não estás vendo que Anhã me bate?
Defende-me, se quer que te sirva e corte muitas árvores
para ti" (isto porque algumas vezes trabalhavam para nós,
cortando pau-brasil, pelo que lhes damos alguma
ninharia). Por esta razão, temem sair de suas ocas à
noite, a não ser que levem consigo uma tocha, pois acham
que o fogo é um soberano remédio e defesa segura contra
tal inimigo. Da primeira vez que escutei estes casos,
achei que não passavam de histórias fabulosas, até que
vi pessoalmente um cristão exorcismar este mau espírito
simplesmente invocando e pronunciando o nome de JESUS
CRISTO. (...)"

SIMBOLISMO
Muitos animais foram
associados à Cristo, já
outros ao Demônio e aos
seus sectários. Anhangá,
adquiriu uma conotação
diabólica, em virtude do
diabo muitas vezes tomar
forma de animal, segundo
alguns demonólogos. A
imaginação popular se
encarregou te tecer
lendas a respeito do
assunto. Mas, na
verdade, Anhangá é um
espírito do "bem", que
tenta proteger a
floresta e os animais do
predador "homem".
A caça para o homem,
possui dois simbolismos.
De um lado, a morte do
animal, o que representa
a destruição da
ignorância, das
tendências nefastas; do
outro, a procura da
caça, o que significa e
procura espiritual. A
caça é legítima, uma vez
que produz refeições
comunitárias, mas também
desperta o sentido
selvagem no homem.
Nos animais projetamos
todos os nossos ódios,
nossos desejos, nossas
paixões, nossos amores e
nossos temores.
Para evoluir, o ser
humano deve exercer
sobre si mesmo uma
caçada ritual, na qual
é, a um só tempo, a caça
e o caçador. O anhangá,
portanto, propicia a
todo caçador que não
seguir as regras da
natureza, a tornar-se a
caça.
Com certeza temos muito
que aprender com os
animais.
Texto pesquisado e
desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO

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