O CAVALO ENCANTADO

Essa lenda, segundo a descrição de Apolinário é a seguinte:

"Em fins do século XVIII, erravam naquela rica região campesina inúmeros índios cavaleiros da tribo dos valentes Minuanos. Entre eles, havia o filho de um cacique, moço muito invejoso, chamado Jaguaretê-Piré (couro de tigre). Este índio amava apaixonadamente a linda e esquiva Poty-poran (Flor bela), amada , também, por Inhanca-Guará (cabeça de pássaro), a quem a mesma preferia.

Roído de ciúmes e despeito, Jaguareté-Piré deliberou fazer uma emboscada ao seu rival para matá-lo. Assim, ao passar pela Lagoa Parobé, viu, no meio de uma quadrilha de baguais, um enorme cavalo de crinas e cola prateadas, de um pêlo muito negro, luzidio e macio como veludo.

Fazendo menção de boleá-lo, o belo animal, a princípio tão arisco, parou subitamente. Após prendê-lo no laço, Jaguareté-Piré falou:

-"Agora sim, Poty-Poran há de querer-me, preferindo-me ao meu rival".

E assim dizendo, meteu as rédeas no animal, colocou o lombo um couro de veado que lhe servia de sela e, cingindo a cabeça um capacete de penas de avestruz, montou o lindo bagual seguindo em direção ao acampamento de Poty-Poran.

Não tinha, porém, galopado meia quadra, quando o cavalo formou um salto, ou mais propriamente um vôo, e, fedendo os ares em direção à lagoa, atirou-se no meio dela, desaparecendo para sempre com o cavaleiro.

Os índios da valente tribo guarani deram então à Lagoa Parobé o nome de Lagoa do Cavalo Encantado.

Eis, em resumo, a lenda que, hoje, já é um pouco alterada na forma e no fundo, ainda é lembrada por alguns velhos moradores do local."

 

Sempre digo que é difícil sucumbir ao encanto de uma lenda quando não se está no ambiente ao qual ela pertence. Nós, seres urbanos, poucos nos detemos (com raras exceções) a contemplar o sol, as estrelas e a lua. Caso este fato ocorresse, tudo que é dito a respeito deles soariam bem diferente. Isto também é verdadeiro, para os contos e lendas do cavalo, da anta, do jabuti, para todo aquele que não tem estes animais como personagens importantes de seu mundo. Entretanto, as estórias indígenas são puras e tão lindas que despertam o interesse mesmo àquele que nunca andou pelo selva ou nunca sentou nu ao pé de um fogo de chão. Todas elas, comovem pela simplicidade de expressão. E, sem sombra de dúvida, todas elas ensinam a grande verdade de que em todos os povos e em todas as épocas, a mesma multiplicidade de sentimentos está reunida no coração humano.

SIMBOLISMO DO CAVALO

 

O cavalo é um dos arquétipos principais inscritos na memória humana. Seu simbolismo se estende tanto ao domínio urânico quanto ao reino ctônico. Ele é o condutor do "carro solar", que atravessa os mundos transportando as almas. É ele, sem sombra de dúvidas, o animal sacralizado por excelência. Onde o cavalo viveu, o homem quase o divinizou. Sob este aspecto, o único animal que chega a rivalizar com ele é a serpente. Esses dois animais são ligados ao elemento Água, como o dragão, primo simbólico da serpente (a fusão das entidades simbólicas se encontram surpreendente figura Cavalo-Dragão).

Animal mágico e misterioso, o cavalo é associado por uma crença tão antiga quanto universal às trevas do mundo ctônico: ele pode então surgir das entranhas da terra ou dos abismos do mar (a designação das ondas pelo nome de "cavalos do mar", em francês, sendo a espuma sua crina, é clara a esse respeito).

Mas o cavalo é muito complexo em suas acepções simbólicas, uma vez que ele é portador tanto da vida quanto da morte e é associado tanto à água como ao fogo (com a valorização positiva ou negativa desses dois símbolos: o fogo, vivificante ou destruidor; a água, nutridora e asfixiante).

O cavalo é ainda, ligado à Deusa-mãe, que às vezes aparece na sua forma.

Muito presente nas mitologias, o cavalo pode tornar-se inquietante, até francamente maléfico. Então, passa a ser animal das trevas, ligado à morte e possui qualidades de psicopompo. Assim é entre os povos altaicos das estepes da Ásia Central, onde as tradições conservam a recordação do cavalo ctônico, que possui poderes mágicos, podendo ocasionalmente suprir os dos homens, onde eles se detêm, no limiar da morte.

Segundo o rito xamânico da maior parte dos povos do Altai, a sela e o cavalo do morto são levados para o lado do cadáver, de modo que o cavalo leve e guie sua alma no além. O sacrifício do cavalo ao seu dono é muito recorrente na Ásia. Ele é atestado igualmente entre muitos povos indo-europeus e entre os antigos povos mediterrâneos. Assim, a "Ilíada" menciona o sacrifício de quatro cavalos por Aquiles na fogueira funerária de seu amigo Pátroclo: deveriam conduzir o defunto ao reino de Hades. Práticas semelhantes existiam no culto nórdico da força vital. Assim, no século X, Ahmed ibn Fadhlan, enviado do califa, descreve o enterro de um chefe viking, do qual foi testemunha, nas margens do Volga. Narra com precisão esse rito da força vital: o navio funerário sobre seus esteios, "as grandes estátuas de madeira em forma humana" dispostas em círculo em torno do dreki (navio de guerra), com alimentos e bebidas. "Em seguida, puseram ao lado do morto todas as suas armas, levaram até ele dois cavalos em suor, mataram-nos a golpes de espada e os atiraram no barco". Depois, num "deboche de sangue, suor e sêmen humano", uma escrava do morto se oferece para acompanhá-lo no além. Depois de uma sessão de vidência e de relações sexuais com seis homens na tenda fúnebre, elas foi estrangulada. Em seguida, o parente mais próximo do defunto ateou fogo no navio funerário."

O papel funerário do cavalo continua vivo na Ásia. Por sua clarividência e sua atribuição de psicopompo, ele ocupa papel importante nos ritos xamânicos. Assim, o espírito benéfico do xamã altaico, que o acompanha em suas viagens divinatórias, tem "olhos de cavalo, os quais lhe permitem ver a trinta dias de viagem: ele vela sobre a vida dos homens e informa sobre isso o Deus supremo."

O cavalo, principalmente se preto, pode significar a morte ou o flagelo, ou ainda a luz escura, em relação ao sol negro. O cavalo ruço, mencionado no Apocalipse, simboliza a guerra e a efusão de sangue; o cavalo de pelo claro anuncia muitas vezes a morte, como atestam muitas tradições populares. Entretanto, se o cavalo de um branco reluzente simboliza a majestade, esse cavalo de pêlo claro é de um branco pálido, desbotado, lunar. Essa brancura é a cor da mortalha: é a brancura cadavérica ou das "noites brancas". Essa brancura de luto se apresenta com a cor negra.

A maioria dos cavalos considerados maléficos são ligados à água ou às fontes (o nome grego de Pégaso tem relação com a fonte, uma vez que significa "Das Fontes de Água"). Muitas histórias falam de fontes que jorraram do casco de um cavalo. Lendas célticas narram que no murmúrio das fontes podem ser ouvidos relinchos de cavalos.

O cavalo maléfico, lunar e aquático, é versão deturpada da Grande Deusa sob seu aspecto negro e sua forma de deusa-égua. Bom exemplo nos é fornecido pela deusa gaulesa Solimara, deusa-égua, sem dúvida antigamente solar, como parece indicar seu nome; era ligada à água e ao outro mundo e foi transformada pelo folclore popular vosgiano em fada maléfica, chamada localmente Souciau.

No domínio celta, o aspecto Deusa-Égua da Grande Deusa se encontra não só com Rhiannon, corruptela de Rigantona, "Grande Rainha", mas também com Macha ou com a galesa Epona (Epos= cavalo, em gaulês). A assimilação não é somente céltica. Deméter era honrada em toda a parte sob o nome de Epona, ou das "Três Eponas".

Um último exemplo: o Cavalo de Tróia, oferenda dirigida a Atena (originalmente, a Deusa Branca, isto é, a Grande-Deusa dos antigos) era de pinho, e era um cavalo, porque era necessário um animal consagrado à Lua, aspecto astronômico desta Grande Deusa.

Texto pesquisado e desenvolvido por

 

Rosane Volpatto

Bibliografia:

Moça Lua e Outras Lendas - Walmir Ayala

Cultura Cívica Brasileira - Gonçalves Ribeiro