MARIA, O RETORNO DA DEUSA
Muito embora,
dela se tenha uma visão poética, seja em ícone, em
pintura ou em hino, Maria faz reviver em suas
figura, as antigas imagens do passado, em total
contradição ao texto do Novo Testamento e as
afirmações canônicas.
Maria é a Deusa Mãe não
reconhecida pela tradição cristã. Com exceção do
primeiro capítulo da Evangelho de Lucas, onde é
representada como a figura central do relato da
anunciação, Maria raramente aparece nos Evangelhos.
Quando o faz, seu papel é de subordinação total para
com o filho. Um panteão de imagens a revestiu, no
entanto, durante os 500 anos que se seguiram a sua
"morte", de forma que chegou a assumir a presença e
importância de todas as Deusas que a antecederam:
Cibeles, Afrodite, Deméter, Astarte, Ísis, Hator,
Inanna e Isthar. Como elas, é virgem e mãe; como
muitas delas, dá à luz a uma criatura meio humana,
meio divina, que morre para logo renascer. Tal como
fizeram Atis, Adônis, Perséfone, Osíris, Tamuz e
Dumuzi antes que ele, Jesus desce ao submundo dos
infernos, onde sempre foi tido como lugar de
regeneração. Se entende, ainda, que sua ascensão e
ressurreição, como os de outras deidades, redimem a
todo ser encarnado das limitações da mortalidade e
do tempo.

O nome de Maria, provém do
vocábulo latim "mare", que significa mar. Todas as
Grandes Mães nascem do oceano primogênito ou dos
abismos da água, o útero primordial da vida da qual
emerge toda criatura. O mar era o ideograma de Nammu,
a Deusa suméria; Ísis era "nascida de
tudo-que-é-água"; Hator é "o abismo das águas do
céu"; Nut, Deusa do Céu, deixa cair seu leite sob a
forma de chuva; Afrodite nasce das espumas do mar. É
possível que as coloridas sereias que estendem seus
braços e deixam flutuar seus cabelos aos quatro
ventos nas proas dos barcos sejam um remanescente
popular desta referência.
A Maria é conhecida, as vezes,
como a "rede" e a seu filho como "pescador divino".
Na Suméria, de modo idêntico, Dumuzi, filho-amante
de Inanna, era apontado como "Senhor da Rede". Desse
nome se faz eco a imagem de Cristo como "pescador
dos homens". A concha marinha, consagrada a
Afrodite, imagem pela qual os iniciados de Eleusis
se reconheciam uns aos outros, se converteu na Idade
Média no talismã dos peregrinos que caminhavam até o
grande santuário de Santiago Compostela, no norte da
Espanha.
Maria herdou de Ísis seu título
"Stella Maris", "Estrela do Mar", que evoca, o
celeste mar do firmamento noturno e o oceano
terrestre. Também, como Ísis, se converteu na
padroeira dos barcos e marinheiros, a salvadora de
vidas em uma época em que se viajava à noite, tendo
as estrelas como guias. Em Sicília, a imagem da
Virgem substituiu o olho de Hórus, filho de ísis,
que antigamente era pintado nas proas das barcas de
pesca da região.
Maria se converteu para a
alquimia, na estrela que guiava o peregrino que
embarcava em águas desconhecidas do grande mar da
alma.
A
OUTRA FACE DE EVA

(Fig. 1)
Na imagem acima
(figura 1), observa-se que
o rosto das mulheres são idênticos. Eva, nua,
oferece a humanidade a maçã da morte, que tomou da
serpente. Maria, vestida, oferece a maçã redentora
da vida. Adão está deliberadamente oculto, enquanto
a caveira sorridente entre as folhas da árvore, do
lado de Eva, faz par com a morte que a espera à
direita.
Do lado da árvore onde se
encontra Maria, encontramos a cruz com o Cristo
crucificado, fruto do seu ventre milagrosamente
intacto.
Essa imagem, portanto, nos
passa a idéia de que Maria é a outra face de Eva, ou
seja, aparece como redentora do pecado de Eva. Ela
deve ser perpetuamente virgem, livre da mancha de
uma relação sexual com outro ser humano.
A leitura cristã literal da
virgindade de Maria contrata totalmente com a antiga
interpretação simbólica da virgindade da Deusa Mãe,
a maravilha da natureza renovando-se perpetuamente a
partir da fonte que é ela mesma. A virgindade de
Maria não pode redimir a "caída" de Eva, unicamente
exacerba a idéia que houve um pecado no princípio, e
que há algo intrinsecamente mal na natureza humana
que deve expiar-se.
Como ensina Warner:
"A Imaculada Concepção continua
sendo um dogma que separa a virgem Maria, que
permanece pura apesar da "caída" da raça humana...A
Virgem, ícone ideal, afirma a inferioridade do
destino humano. Concebida sem mancha, e situada
muito acima dos homens e das mulheres,...acentua a
sensação de pecaminosidade. Seus fiéis lhe atribuem
um estado que eles nunca alcançarão. Sem dúvida,
Maria é a outra face de Eva".
Alan Watts nos oferece uma
compreensão mais rica do simbolismo de Maria:
"A Mãe Virgem é, em primeiro
lugar, "Mater Virgo", matéria virgem ou terra sem
arar; é a "prima matéria" antes de sua divisão em
multiplicidade das coisas criadas, ou antes de ser
arada. Como estrela do mar, "Stella Maris" (mare=Maria),
fonte selada, "o ventre imaculado desta fonte
divina" é também as águas sobre as que se movia o
espírito divino no princípio dos tempos. Como "a
mulher vestida do sol, com a lua embaixo de seus
pés", é tudo como as outras mitologias representavam
as Deusas da Lua, que brilha com a luz do sol e
aparece na noite rodeada (coroada) de estrelas. Como
o ventre em que nasce o Logos, é também o espaço; a
convenção artística comum assim a refletia quando a
viu com um mato azul, semeado de estrelas".
O MITO LUNAR
E SOLAR
Como todas as Deusas Lunares,
Maria é Virgem e Mãe. A trama de seu destino segue
os ciclos de mudanças da lua, porém com uma
diferença crucial. Dá à luz a seu filho embaixo da
lua crescente, o cria embaixo da lua cheia, porém,
não se casa com ele; chora a morte de seu filho
durante três dias entre sua crucificação e sua
ressurreição, esses três dias de escuridão, quando a
lua desaparece e Jesus desce aos infernos,
rastreando ou arando a dimensão do submundo para
libertar a vida que se faz ali enterrada; segundo a
simbologia lunar, para despertar a luz adormecida da
iminente luz crescente.
O lamento de Maria por seu
filho sacrificado se faz eco das anteriores Deusas
por seus filhos e filhas sacrificados; as três
Marias que rodeiam o drama da Paixão, recordam as
três fases visíveis da Lua, a trindade das Deusas do
destino. A sua volta, Maria Madalena saúda Jesus
como "o jardineiro", a vida ressuscitada. Ela o
ungiu com azeites preciosos antes de sua morte, como
fizeram todas as sumas sacerdotisas das antigas
Deusas com os filhos-amantes da Deusa.

Para a Igreja grega ortodoxa,
Maria assume o papel de seu filho e entra, também,
no reino da escuridão da lua. Isso sucede durante os
três dias de seu "adormecimento", que precedem sua
ascensão, pela qual se reúne com seu filho. Esse a
coroa então, durante uma cerimônia que é como o rito
do matrimônio sagrado da Lua Cheia, e que se conhece
na doutrina cristã como a "coroação da Virgem". Esse
rito "nupcial" da lua cheia está, pode-se dizer,
deslocado, de forma que o ciclo se completa mais
tarde, na região simbólica da vida eterna. Como se
com ele se comemorasse este mistério lunar, na data
da Páscoa que não são as mesmas cada ano, mas se
adaptam ao curso de mudança da Lua Cheia em relação
com o equinócio da primavera (HN).
Os simbolismos lunar e solar se
refletem de forma intrigante no calendário cristão
de maneira que se corresponde exatamente com sua
história mitológica. Quando o que se celebra é um
drama de transformação, o momento em que levam a
cabo os rituais se ajusta ao curso da lua; por
exemplo, a data da ressurreição de Cristo ao domingo
que se segue a primeira lua cheia depois do
equinócio de primavera (HN). Porém, quando o
"acontecimento" pertence ao modelo heróico solar da
conquista da escuridão por parte do princípio da
luz, o calendário segue o curso do sol; por exemplo,
o nascimento da criança "tem lugar" durante o
solstício do inverno (HN) quando o sol volta a
nascer a partir da escuridão do antigo ano.
Alan Watts, em sua obra "Myth
and Ritual Christianity", uma leitura indispensável
sobre o tema, aclara esse ponto:
"No ciclo do ano cristão o
calendário solar rege os ritos da Encarnação, dado
que esses se conectam com o nascimento solar e caem,
portanto, em dias fixos. Os ritos de Expiação, de
morte de Cristo, da Ressurreição e da Ascensão, por
sua vez, se regem pelo calendário lunar, porque a
lua crescente e minguante alberga uma figura de
morte e ressurreição".
Segundo o
padrão mitológico perene, o sol que nasce da mãe é o
sol que nasce da lua que se alça desde as
profundezas da escuridão e do renascimento do ano. A Cristo se dava o nome de "Sol
da Justiça e "Luz do Mundo" e o número de seus
apóstolos corresponde a cifra solar doze, que
representa o itinerário solar através dos doze meses
do ano. Com Jesus o número ascende à treze, como
treze são os meses do ano lunar, conciliando-se
assim o tempo solar com o lunar.
MARIA COMO RAINHA DO CÉU

(Fig. 2)
A Bíblia não
menciona a morte da Virgem Maria e não existe
relatos contemporâneos de seu enterro nem arquivos
sobre o paradeiro de seu sepulcro. A falta de provas
nas sagradas escrituras desencadeou intensas
especulações entre os fiéis e nos séculos IV e
vários textos mencionaram as circunstâncias da morte
de Maria. Ditos testemunhos eram heréticos. De todos
os modos, alguns se converteram em base da tradição
medieval da ascensão: a crença de que Maria subiu
fisicamente ao céu.
Talvez a
referência mais antiga a ascensão física é a da obra
anônima "Obsequies of the Holy Virgin", escrita em
siríaco (dialeto arameu que segue sendo a língua da
Igreja cristã síria) entre começos do século III e
meados do V. Esse texto descreve a discusão entre os
santos Pablo, Juão, Pedro e André "à entrada do
sepulcro de Maria". Jesus se apresenta em companhia
do arcanjo Miguel para tomar uma decisão e ordena
que o cadáver da virgem seja elevado ao céu. Levam o
corpo "até a árvore da vida", habitual símbolo da
Deusa, que se remonta à Suméria, onde se reúne com a
alma de Maria.
Em outros
realtos do século V sobre seus últimos dias na
terra, Maria é ascendida ao céu por Jesus, os
apóstolos, uma corte de anjos e os profetas Moisés,
Henok e Elias.
A medida que a
tradição da ascensão foi aceita, a divina identidade
de Maria caiu irrevogavelmente confirmada. Igual à
Ísis, Isthar e outras, se converteu na Rainha do
Céu.

Em 754, o
imperador Constantino V estipulou o culto
obrigatório de Maria e proibiu a entrada ao céu de
todo aquele "que não reconheça que a eterna e
sagrada Virgem é sincera e justamente a mãe de Deus,
superior a qualquer criatura visível ou invisível e
que com sincera fé não busque sua interseção como
alguém que confia em seu acesso à Deus". São Anselmo
de Canterbury (1033-1109) descreveu a Maria com as
mesmas palavras com as que havia definido a uma
Deusa da natureza:
"Graças à ti,
os elementos se renovam, os demônios são pisoteados,
os homens se salvam e até os anjos caídos recuperam
sua posição. Oh, mulher, tão cheia e transbordante
de graça, de ti emana tanto que todas as criaturas
recobram seu viço."
A imaculada
concepção situou Maria acima da pecaminosa raça de
Adão e a ascensão a libertou da lei da morte. Porém,
como não existe provas bíblicas que justifiquem a
pureza da virgem ou sua ascensão ao céu, durante
séculos a Igreja não aprovou oficialmente essas
doutrinas.
A imaculada
concepção se converteu em artigo de fé em 1854 e a
ascensão em 1950. Tais decisões papais se basearam
no reconhecimento da intensa devoção que os
católicos de todo o mundo manifestavam sobre a
Virgem. A resolução de 1950 foi obra do papa Pio XII
como conseqüência direta da petição firmada por oito
milhões de pessoas.
Em 1954, a
Igreja católica nomeou oficialmente a Maria "Rainha
do Céu", justamente, muitos séculos depois que se
houvera convertido em um dos títulos mais
utilizados.
A DEUSA PERDIDA DA
TERRA
Maria, ao longo dos séculos,
passou de um papel secundário, como Mãe de Cristo,
para tornar-se cada vez mais associada e vinculada
com a Deusa Mãe neolítica da terra doadora de vida.
Aliás, não são poucos os
autores que afirmam que o culto à Virgem Maria é uma
continuidade da adoração das Deusas do paganismo,
tal qual eram adoradas no Egito, na Grécia, na
Babilônia e em Roma.
É o escritor Woodrow que nos
diz:
"Um dos mais
sobressalentes de como o paganismo babilônico tem
continuado até nossos dias, pode ver-se na forma em
que a Igreja inventou o culto à Maria, para
substituir o antigo culto da Deusa".
A partir da
Idade Média, Maria já havia assumido o papel de
Deusa dos grãos, convertendo-se, como suas
antecessoras, na responsável última de manter e
nutrir a humanidade. Em uma bela ilustração do
Milagre do grão, Maria aparece como Rainha da Terra,
fonte do grão, da colheita e, em fim, da humanidade.

Uma lenda
medieval relata como, durante a fuga para o Egito, a
Virgem e o menino Jesus chegam a um campo em que um
camponês está arando e semeando o grão. A Virgem e o
menino lhe avisam de que se visse um grupo de
soldados à busca da sagrada Família, e esses lhe
perguntassem se havia visto passar uma mãe com um
filho, deveria responder que os viu quando estava
arando e semeando o campo. A Família abandona as
terras e, de forma instantânea, o trigo recém
semeado brota e cresce até chegar a sua altura
máxima: dourado e maduro, já pronto para a colheita.
Os soldados de Herodes aparecem e o camponês
responde que sim, viu passar uma mãe e um filho
"quando comecei a semear a semente".
Berger, comenta
o seguinte:
"As obras de
arte e os textos dos séculos XII e XIII que fazem
referência ao Milagre do grão da Virgem são
testemunho de uma transformação que já havia tido
lugar. É impossível determinar as fases dessas
transformações da protetora do grão na Virgem.
Quando, no século XII, o relato emerge, se faz,
entretanto, em vários lugares diferentes,
manifestando-se na França, Irlanda, Gales e Suécia".
Sua grande difusão sugere que antes de ser plasmado
na arte e na literatura, o relato gozava de uma
longa tradição oral".
MARIA COMO DEUSA DOS ANIMAIS

O boi e a mula, obsequiando-se sobre o berço do
menino Jesus, são um elemento tão fundamental das
representações da cena de Natal que nos surpreende
recordar que não formam parte da narração original
dos Evangelhos.
Simplesmente ao contemplar uma imagem típica da cena
do nascimento, poderíamos ter a antiga Deusa dos
animais diante de nossos olhos. A Deusa, em que foi
sua imagem estilizada e abstrata, se coloca entre os
animais, situados de forma simétrica um de cada
lado. A entrada dos pastores com suas ovelhas é uma
parte essencial a reunião de todos os animais em
torno da Senhora no presépio, imagem da fertilidade
da qual ela era protetora.

Campell propõe
outro significado para a aparição do boi e da mula,
ao assinalar que esses animais eram também que os
simbolizavam as imagens antagônicas de Osíris e Seth,
que, como faz referência o autor, havia sido
instantaneamente reconhecido na época. Desta maneira
se expressava o nascimento do menino Cristo, como
união e superação dos contrários.
Podemos também
contemplar em obras de arte, a Maria sentada sobre
um trono de leões, o que a inclui dentro da tradição
das Deusas cujo domínio sobre os poderes da natureza
se expressa representando-as sobre um leão, de pé ou
sentadas.
MARIA COMO DEUSA DO MORTE E DO SUBMUNDO
Em uma obra
devota de uma época do século XVIII, Maria é
descrita como "a sagrada Virgem que reina nas
regiões infernais....a senhora soberana dos diabos".
Parece bem estranho relacionar Maria com a morte e o
mundo subterrâneo, mas é provável que isso tenha
ocorrido, por ter-se perdido a unidade original da
Grande Mãe que rege tanto a vida como a morte.
A figura da
Nossa Senhora, clemente, indulgente, que intervêm
como última esperança de salvação da condenação
eterna, pode ser vista e lembrada em sua oração,
rezada em todo o mundo pelos católicos, que se
encerra com o pedido: "rogai por nós, pecadores,
agora e na hora de nossa morte". Dessa maneira, a
Virgem volta a assumir os antigos títulos da Deusa
suméria Ninhursag, conhecida como "aquela que dá
vida aos mortos", e de Inanna, a quem se dava o nome
de "a que perdoa os pecados".
Do ponto de
vista teológico, Maria intervêm como Mãe compassiva.
Sua intercessão com Cristo, o juiz, faz inclinar
(metaforicamente) a balança da justiça, que as
vezes, São Miguel sujeita, a favor do pecador. De
maneira idêntica, no Egito, a pluma da Deusa Maat se
coloca no prato da balança, e sobre o outro o
coração da pessoa morta.

O quadro de
Piero della Francesca, que aparece na figura acima,
mostra o quanto Maria é onipresente e que é a ela
que as almas se voltam para buscar clemência. Todos
os relatos apocalípticos são testemunhos da crença
de que podendo-se chegar até ela, o perdão estará
assegurado, pois só Maria pode aceitar o ser humano
na sua totalidade. Curiosamente, é na cena final da
vida, que pode-se ter Maria como quase mais
acessível que Jesus, enquanto os Evangelhos só dão a
conhecer o drama e a figura desse último. A
compaixão pelo sofrimentos dos pecadores pode
comovê-la, enquanto que Jesus, o juiz justo, só
representa a lei, independentemente do castigo.
A medida que o
cristianismo foi se estendendo através dos séculos,
a figura de Maria, a Mãe, trouxe para si o
significado das amorosas esperanças de seu filho. A
esse, em contrapartida, as vezes lhe atribuíam o
papel surpreendente de Pai Insensível, quase como se
estivesse afirmando-se um padrão arquetípico dos
princípios masculino e feminino.
O
MATRIMÔNIO SAGRADO
No cristianismo
ortodoxo, em que Maria era uma mulher humana e Deus
regia o céu com Grande Pai Supremo, a imagem do
matrimônio sagrado entre Deus e Deusa não era
possível. No entanto, o forte desejo de que se
produzisse uma união entre os princípios masculinos
e feminino se expressam em alguns textos gnósticos
excluídos, na idéia que Jesus amou (e inclusive
tomou como esposa) a mulher que carregava o
receptáculo sagrado, Maria Madalena.
Através de uma
simples leitura dos Evangelhos aceitos parece
impensável que doze séculos mais tarde, apareceriam
imagens de Jesus e Maria relacionando-se entre eles
como um casal de noivos. No entanto, sem se conhecer
a interpretação oficial que outra idéia podemos ter
da pintura abaixo?

(Fig.3)
Nela, Maria
aparece sentada ao lado de Jesus, não só como sua
mãe, mas também como sua noiva. Nessa comovedora
obra realizada por Agnolo Gaddi, as túnicas
idênticas dos dois personagens se fundem em uma e,
enquanto Cristo coloca a coroa sobre a cabeça de
Maria, é como se celebrasse uma vez mais o "hierogamos",
o matrimônio sagrado, do sol e da lua; esse era o
momento supremo dos Mistérios das culturas
pré-cristãs. Há, no entanto, uma diferença crucial,
não é a mãe que reconhece seu filho como noivo,
convertendo-se assim em sua noiva. Aqui, é ele que
coroa à ela, não ela à ele.
No mosaico do
século XIII da basílica de Santa Maria em Trastevere
que aparece nas figuras abaixo (Fig. 4 e 5),
Cristo está sentado ao lado de uma mulher que
aparente ter a sua idade, ou até mais jovem.

(Fig. 4)
(Fig.5)
Seu braço se apóia em torno de
seus ombros, em um gesto próprio do noivo que atrai
para si a sua noiva. Nesse caso, ele é que protege
ela, e ela senta-se tranqüilamente envolta em seu
abraço, como em muitas imagens de marido e mulher
através das eras. No entanto, o movimento que se
aprecia na figura provem das mãos dela, ao elevar um
pergaminho sobre o seu joelho, apontando para o
rosto de Cristo por um arco, onde se vê
perfeitamente uma cruz. Mitologicamente, se trata de
uma reunião sob a Lua Cheia, quando o filho, nascido
sob a Lua Crescente, sacrificado sob a Lua Minguante
e perdido sob a Lua Nova, renasce como o amante que
reclama àquela que lhe deu à luz como sua noiva.
Maria e Cristo voltam a ser "um" nessa imagem, e se
transcende a dualidade do masculino e do feminino,
da vida e da morte.
Uma "nova"
encarnação do mito da Deusa e seu filho parece
manifestar quando está preparada a consciência
humana para aprofundar em seu entendimento, buscando
uma nova revelação do significado da vida. É como se
o caráter numinoso das imagens desse à luz a um novo
momento de consciência: isto ajuda a provocar uma
transformação da imagem da deidade em uma cultura
determinada, em uma época determinada. A nova
revelação, que ajuda a que evoluem os valores da
humanidade, emerge das profundezas da alma humana,
cuja imagem mais antiga de si mesma é a da Deusa. a
alma do mundo se renova incessantemente na
humanidade, seu filho, uma nova manifestação de seu
ser. A imagem do filho se entende como o princípio
genérico inerente à vida vegetal, e como o rei cuja
vida encarna a da tribo, e como herói cuja conquista
do dragão das trevas liberava a luz da vida eterna.
Agora, Jesus, o filho-amante mais recente da Deusa,
se converte na voz da sabedoria atemporal da alma
que fala à humanidade.
A morte e a
ressurreição do filho da Deusa, e mais tarde do
Deus, repetidos uma e outra vez, representam as
muitas revelações que sempre teve lugar na evolução
gradual da consciência humana. Parece que a
humanidade necessita passar muitas vezes por uma
desintegração cultural que marca a escura etapa de
transição entre a morte do antigo sistema de crença
e o nascimento de um novo.
É possível que
uma alternância rítmica entre imagens arquetípicas
femininas e masculinas (Deusas e Deuses) sejam
necessárias para a evolução. A permanência fixa em
qualquer dos modos poderia deter o processo do
movimento. Nos Deuses se articulam as aspirações e a
busca heróica. Porém, quando se completa essa
criação, quando é finalizada a urgência e o esforço
da busca, parece que surge um perigo inerente de
cair no literalismo e no historicismo. Isso provoca
a morte da vida que o antigo mito contem. Quando
isso se produz, a antiga ordem deve dar espaço à uma
nova expressão da visão poética a partir da qual
nasce uma nova ordem. Podemos colocar o mito cristão
também nesse contexto, a visão poética se converte
na Mãe de uma Nova Consciência, o Filho. No relato
cristão, como em todos os demais, a tradição mítica
segue visível nas imagens atemporais que revestem a
trama.
Texto
pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO

Bibliografia:
El Mito de La
Diosa - Anne Baring/Jules Cashford
La Diosa -
Shahrukh Husain
Pagans and
Christians - Robin Lane Fox
El mito del
Eterno Retorno - Ricardo Anaya

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