O DILÚVIO guarani

Houve, por todos aqueles da primeira terra

acesso ao que não é destinado à imperfeição.

Aqueles que pronunciaram as belas preces,

aqueles que foram mestres do saber,

aqueles para quem, belamente, houve totalidade acabada:

aqueles todos encaminham-se para sua futura morada.

Eles fazem seguramente com que se desdobre

sua futura morada da terra eterna

no coração da pátria dos Tupã pequenos (divinos de categoria inferior).

 

Aqueles par quem não houve o domínio do saber,

aqueles que se uniram à fonte do mau saber;

aqueles que se puseram distantes dos que permanecem acima de nós;

eles todos encaminham-se mal,

há para eles totalidade desigual.

Existem os que foram transformados em pássaros,

e em rãs, e em escaravelhos;

quanto à mulher ladra, é um cabra

que a transformou nosso pai.

 

Nossos pais benevolentes deixaram antigamente para nós as normas futuras:

somente através dela haverá para nós o bem-viver.

 

Karai Jeupié, senhor do mau amor,

colocou-se à distância de nossos pais primeiros:

casou-se com a irmã de seu pai.

 

Aqui estão as águas chegando:

o senhor do mau amor faz ouvir sua prece,

canta seu canto, dança sua dança.

Eis as águas chegadas:

o senhor do mau amor não se ergue

até a totalidade acabada.

Ele nada, o senhor do mau amor,

junto da mulher, eles nadam;

no coração das águas dançam sua dança,

fazem ouvir sua prece, cantam seu canto.

Eles se provêm de força.

 

Há para eles totalidade acabada.

De duas folhas, fazem surgir a palmeira eterna:

no coração das folhas repousam,

com vistas a ganhar sua morada,

com vistas a coisas não-mortais.

 

Senhor do mau amor, senhor da funesta união:

ele mesmo fez desdobrar-se sua futura morada de terra eterna

na pátria dos Tupãs pequenos.

Vejam: o senhor do mau amor tornou-se

nosso pai e senhor Tapari.

Ele tornou-se o pai verdadeiro dos Tupã pequenos.

 

De acordo com a poesia, a paixão de Karai Jeupié pela irmã de seu pai é que desencadeia o dilúvio universal.

Primeiro um imenso incêndio veio assolando a terra desde o Oeste, para depois chegarem as intensas chuvas, que foram cobrindo tudo e afogando todas as criaturas. Só se salvou o casal guarani que praticou o incesto, pois conseguiram subir em uma palmeira pindo. A medida que as águas subiam, a tal palmeira aumentava de tamanho. O casal alimentou-se dos frutos e aqueceu-se com suas folhas, até que cessou a chuva e as águas voltaram ao seu nível normal. Foi esse casal que originou uma nova estirpe guarani.

Karai Jeupié era culpado segundo as leis dos homens, mas escapou à cólera dos deuses como também ganhou para si o mesmo estatuto divino, uma vez que tornar-se um Karai (profeta). Para lei divina o incesto não era condenável e ainda permitiu que o culpado tomasse lugar junto aos deuses. Karai Jeupié ao cometer o incesto, portanto, quebra a condição humana, iguala-se aos deuses, que, ignorando essa proibição, situam-se além da culpabilidade.

Para os deuses o homem devia dedicar-se com perseverança aos exercícios espirituais, dançando e entoando os hinos sagrados. Além disso, deveria se limitar a um regime estritamente vegetariano e fazer uma longa peregrinação através do mundo. Somente agindo dessa forma seria possível alcançar a perfeição e ser merecedor da graça de ingressar na Morada dos Deuses (Yvy Marã eÿ) sem sofrer a prova da morte.

A verdadeira causa do dilúvio foi a violência e selvageria humana, que não os deixava viver com a devida moderação apreciada pelos deuses. O desenfreado desejo humano, faz com que toda a humanidade perca o estado de "aguyje", de totalidade acabada, ou seja, perdem sua condição de homens-divinos para tornarem-se homens mortais.

O fim da Primeira Terra é a "certidão de nascimento da humanidade", pois opera-se a separação do divino (não-mortal) e do humano (mortal). O que era UM torna-se dois. De um lado está a Terra Sem Mal, a Morada dos Deuses e do outro a Terra da infelicidade, morada dos homens que ainda desejam ser "os eleitos".

Todos os habitantes da Primeira Terra que possuíam entendimento, alcançaram a Terra Sem Mal. Os que foram impuros e transgrediram a Sagrada Palavra-Alma, foram metamorfoseados em insetos, aves, ou outros animais em cuja forma também acendera a Morada Eterna. Os que conhecemos hoje nessa Terra Nova, são cópias do que estão lá.

A destruição da primeira terra pelo "Mba'e-megua guasu" (Dilúvio), ocorreu em virtude das atitudes dos primeiros humanos, mas não quebrou o ímpeto da vontade criadora dos deuses, que estavam dispostos a reconstruí-la. Mas esta já outra estória....!

Texto pesquisado e desenvolvido por

ROSANE VOLPATTO