~*~HOMEM-TAPIR~*~
HOMEM-TAPIR

Entre os Caiapós reina a
monogamia, fundamentada na lei e nos costumes tribais.
Nesse regime, a mulher encontra o seu melhor reconhecimento como
parceira equiparada ao homem. O casamento brota de uma cerimônia
solene, mein-kamro (cerimônia de sangue), ou do mero convívio em
relacionamento sexual.
Conseqüentemente o matrimônio representa um compromisso legal à comunhão de
vida marital, perpétua, considerada com um dado da Natureza, inclusive na
mitologia.
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No seio da comunidade, o
ato de amor é totalmente livre e soberano. No mito do homem que se
transformou em tapir, do começo ao fim, os amores de Bira, o bem-amado
das mulheres, são representados como inaugurando uma nova ordem das
coisas. Sua vida amorosa com as mulheres transcorre às escondidas,
longe da aldeia e da comunidade, onde o herói encontra a amada do
momento. Da mesma forma, a mulher que, segundo outro mito, se entrega
ao tapir, tem encontros furtivos com o amante, lá fora, na calada da
noite, bem longe da aldeia.
A noção de ficarem
reservadas à noite todas as manifestações amorosas, no sentido do
protótipo mitológico, prende-se a uma lei ditada de pudor indígena,
fato que se revela nitidamente na vida cotidiana da aldeia.
Sempre, nos relatos
míticos, transcende justamente o sentimento de pudor, não se
mencionando apenas o ato, mas, dizendo, por exemplo: ele foi para o
lado, afastando-se dos outros, a fim de fazer alguma necessidade
Na mentalidade indígena, a
comunidade é universal e soberana, a ponto de o indivíduo não poder se
afastar dos companheiros sem motivo válido. O sentimento de pudor
representa tal motivo válido.

No entanto, o pudor não
representa obstáculo ao ato sexual. A despeito da monogamia ser lei,
o amor passando por sobre todas as barreiras, o sexo e sua satisfação
plena, lhe são quase equiparados. Contudo, isto não vale para a vida
sexual desenfreada ou a promiscuidade dos sexos. A equiparação vale
somente para o convívio individual de dois seres, protegido pelas
leis do pudor. Tal conceito transcende no mito do homem que se
transformou em tapir e constitui um modelo quase clássico, no que se
refere ao assunto de relações sexuais. Toda estória é
caracterizada pela paixão elementar, absorvente. Por outra, no caso
do belo Bira, a paixão exerce papel tão preponderante, pois o herói
apenas está no papel de Don Juan, brincando ora com uma, ora com
outra; porém, é justamente o proceder desta maneira que perturba a
vida comunitária e provoca uma onda de paixões.

Primeiro vem o ato de
vingança dos maridos; a transformação do belo Bira e a caçada ao
tapir esvaziam o ato de seu caráter de crime que, por outra, oferece
satisfação bastante aos ciúmes desenfreados. Com afinco cruel, os
maridos vingam-se, mandando servir às esposas a carne assada do
amante. Tal procedimento representa também determinada forma de
castigo refletivo, pois elas são condenadas a comer da carne do homem
ao qual, outrora, se uniram.

Então, gritos e lamentos
alucinantes ressoam pela aldeia. Nesse transe doloroso, ouvem-se
pragas e juras de vingança contra o suposto provocador do mal, a
morte de Bira. Seria de supor-se que Bira teve condições de
oferecer-lhes algo que os maridos lhes estavam a dever. E esse algo não
podia ser outra coisa além de carinho e adoração. Bira cortejou as
mulheres, sem que a entrega do seu corpo implicasse em direitos e
deveres. Com sua morte, as mulheres perderam algo que lhes era devido,
tanto nos seus próprios pensamentos, quanto nos da coletividade. Elas
se sentem profundamente ofendidas, agravadas em seu orgulho e, de
acordo com os padrões da sociedade indígena, sua ira parece
justificada. Vão à beira do rio e, juntas, entoam um canto mágico.
Em um instante de profunda emoção, no auge de uma dor ardente e
louca ira, a metamorfose chega a concretizar-se. Como o amor de cada
uma foi e continua sendo assunto estritamente pessoal, assim também o
é a vingança. Cada uma delas transforma-se em um peixe.

A água, além de conferir
grandeza e força, purifica. Nesse elemento, as mulheres permanecem
intocáveis e incomunicáveis.
Posteriormente, então, os
maridos pescam suas mulheres do rio. De volta à terra firme e ao convívio
dos seres humanos, tornam-se ancestrais do grande e orgulhoso povo
Caiapó, ancestrais dos me-be(n)-okre, gente do fundo da água.
Foi Bira quem levou à
fundação de uma nova sociedade, na qual marido e mulher são
companheiros, que se amam mutuamente. Foi ele, o iniciador de uma nova
ordem social e, por conseguinte, um herói cultural.

Texto pesquisado e
desenvolvido por
Rosane Volpatto

