A LUA
(lenda dos
índios caxuiana)
A gente de
Jaci procurou matar a cutia. Um índio fugiu e um outro, para amansá-lo,
deu-lhe muitas flechas. Ele ficou muito contente, recebeu as flechas e
pendurou-as. Depois disse ao outro:
- Vamos até
minha casa, minha mulher terá muito prazer em vê-lo.
Ouvindo
aquilo, o amigo juntou as flechas, botou na cabeça o chapéu de rabo de
japu e ambos partiram. No mato, ele foi comendo frutos e seus dentes
enegreceram. Ao chegar à casa, parou com vergonha de entrar. O amigo
perguntou:
- Por que
motivo está parado?
- Estou com
vergonha de sua mulher.
Então o
visitante penteou-se, alisou os compridos cabelos, botou as braçadeiras,
enfeitou-se e julgou-se pronto para a visita.
Entrando na
casa o dono armou a rede grande e pintada e na mesma se sentaram. Depois
falou à mulher:
-Convidei-o
a vir até aqui. Dê-lhe comida à farta. Que ele encha a barriga, que
morra de tanto comer!
A mulher
disse que sim e trouxe um alguidar muito grande, com mingau. O
visitante, mesmo deitado, o comeu todo. Depois trouxe macaxeiras
cozidas, bananas cozidas, bananas assadas, bananas cruas, amendoim
torrado, bolo de amendoim, jerimum cozido, carás cozidos, inhames
cozidos, pipocas, pamonhas. Arrumou estas comidas diante da rede. Ele
comeu um bocado de cada piféu e embrulhou alguma coisa, a fim de levar
para sua casa e lá comer. Despediu-se e partiu na frente. O amigo pegou
no facão grande, muito afiado e nas flechas e seguiu-o.
O visitante
perguntou-lhe;
- Para que
leva você esse facão?
- Na volta,
quero cortar um belo pau que vi no caminho.
- Para que?
- Vou fazer
uma enxada e preciso de um cabo.
Em caminho o
amigo tirou o facão e com um golpe decepou-lhe a cabeça. A cabeça caiu
ao chão, mas o corpo ficou de pé, a tremer, a tremer...
O assassino
deu-lhe bordoadas, até o corpo cair. Depois, encarou a cabeça decepada.
As pálpebras continuavam batendo. Vendo isso, cortou um pau, aguçou-o,
espetou a cabeça e foi fincar o pau no meio do caminho. Depois de
decapitar o companheiro, escondeu-se, pois esperava que os homens da
tribo saíssem à sua procura.
Um caçador
que veio para aquelas bandas, encontrou a cabeça no alto do pau, com os
cabelos compridos voando ao vento, Pensou que fosse o diabo. Obedecendo
ao primeiro impulso, correu, mas depois voltou, perguntou a si mesmo:
- Que será
que eu vou ver?
Lá estava a
cabeça espetada no poste. Encarou-a e viu que não estava morta, pois
tinha os olhos brilhantes e as pálpebras batiam. A boca abria-se. Então
resolveu contar a sua gente. Olhou mais uma vez a cabeça e viu que ela
chorava e as suas lágrimas caíam ao chão.
Correu para
a aldeia e lá chegando, anunciou- Não sei quem decapitou nosso irmão.
Depois, cortou um pau, espetou a cabeça e plantou-a no meio do caminho!
Contando
tudo isso, os homens gritaram:
-Vamos
buscar! Vamos buscar!
Estes
empunharam azagaias, outros apanharam flechas. E alguns levaram grandes
cestas.
Tomaram o
caminho e partiram gritando. Quando ouviu a gritaria que se aproximava,
o assassino trepou o mais alto que pode em um frondoso pau-mulato. Não
podendo subir mais ainda, escondeu-se no meio da folhagem.
O caçador
que encontrara a cabeça chegou na frente do bando e mostrou-a aos que
vinham atrás. Ela ainda não tinha morrido, seus olhos continuavam
brilhantes e piscavam, suas lágrimas rolavam e caíam no chão. A boca
abria e fechava, mas não conseguia falar.
Os homens
pegaram a cabeça, colocaram-na no cesto e tocaram para aldeia, dando
gritos. Mas dali a pouco ela arrombou o cesto e rolou no chão. Pararam,
meteram-na no cesto e prosseguiram mas, depois de um estirão, a sinistra
carga rolou de novo por terra.
Dois do
grupo acharam melhor voltar e enterrar o corpo, que continuava
insepulto.
A cabeça foi
posta mais duas vezes em novos cestos, mas estes se rasgavam deixando-a
cair no caminho. Então, foraram muito bem um novo cesto e nele
recolheram com cuidado, a carga difícil. Tudo inútil, ela ciu de novo.
Então, já ressabiados, colocaram-na em novo cesto e um homem levou-o às
costas. De repente, deu um grito lancinante. É que a cabeça tinha-lhe
metido os dentes no ombro. Atirou-a no chão e correu.
Um grupo
falou:
-Minha
gente, esta cabeça não quer mesmo ir para a aldeia! Deve estar
enfeitiçada.
Atiraram-na
para o lado e seguiram o caminho. Mas a cabeça, rolando pelo chão,
acompanhou-os. Lá longe alguém gritou:
- A cabeça
vem correndo atrás da gente!
Todos viram
aquilo e fugiram. Atravessaram nadando o leito cheio de um iagarapé. Do
outro lado, à beira da água, havia um alto pé de bacuparis. Muitos
treparam nele para comer frutos. Um dos fugitivos tranqüilizou os
demais- Não precisa ter tanta pressa; ela não poderá atravessar esta
água!
A cabeça
veio rolou o barranco, saiu nadando e alcançou o outro lado. A gente que
tinha trepado no bacuparizeiro a espiava com medo.
- Descei
depressa que eu já vos vi! disse ela.
Quando
chegou perto gritou:
- Minha
gente,, dai-me bacuparis!
Um colheu
frutas verdes e atirou-as, mas a cabeça não comeu, exigindo:
- Dai-me
bacuparis maduros!
Atiraram-lhe
bacuparis maduros; ela conseguiu abocanhá-los mas os frutos iam saindo
pelo pescoço atorado.
E ela pedia
mais, muito mais. Então, passaram a atirar bacuparis bem longe, o mais
longe que podiam. Ela foi juntá-los, sempre rolando pelo chão. Vendo-a
distante, os homens despencaram da árvore e fugiram. Perto da aldeia, um
deles perguntou:
- Será que a
cabeça vem atrás de nós?
O assassino
viu que eles tinham partido, desceu do pau-mulato e foi para sua casa.
Nem reparou que a cabeça ia rolando na trilha dos fugitivos. De repente,
um deles viu que ela se aproximava e gritou. Todos correram de
cambulhada.
- Minha
gente, esperai-me! Bradava ela.
Mas a gente,
que não era boba, não a esperou. Chegando a suas casas, meteram-se
dentro e fecharam as portas. Ela do terreiro, gritava;
- Abri as
portas que eu quero entrar!
Eles porém,
não abriram. Ela, no terreiro, continuava a chorar e nos cabelos
compridos enxugava as lágrimas. Suplicava:
- Quero
tirar minhas coisas aí de dentro!
Então ela
ameaçou:
- Vou
enfeitiçá-los. Meu sangue, meus olhos, minha cabeça podem enfeitiçar!
Vou caminhar pelo arco-íris. Serei legumes para comerdes, ou bananas, ou
macaxeiras, ou carás, ou batatas, ou feijão, tudo isso para comerdes.
Serei terra e vós podereis andar sobre mim, serei timbó para
arrancardes, diluirdes no rio e juntardes o pescado, serei caça para
matardes e depois me comerdes. Eu serei cobra, me zangarei e vos picarei
e vós poderei matar-me. Eu serei lacraia e vos morderei. Eu serei árvore
e me derrubareis, me secareis para lenha, me rachareis e com ela
podereis cozinhar a comida que comeis. Serei morcego, virei da escuridão
e vos morderei. Serei o sol, vos aquecerei do frio. Serei a chuva,
cairei do céu, encherei os rios, propiciarei pescarias e vos darei
peixes. Molharei o capim, o capim crescerá, as caças virão pastar-me.
Serei a noite e escurecerei tudo, para que possais dormir. Eu serei a
manhã para, depois de dormirdes no escuro, acordardes para as lidas do
dia. Que serei eu, porventura? Meu sangue em caminho dos inimigos mudei:
é o arco-íris. Mas meus olhos em estrela transformarei. Minha cabeça vai
ser a lua.
-Minha
gente, continuou, esta cabeça vai ser Lua, meus olhos as estrelas, meu
sangue o arco-íris. Quando eu surgir, estas mulheres e estas mocinhas
sangrarão.
Elas ouviram
aquilo e ficaram assustadas.
- Por que
motivo nós devemos sangrar também?
A cabeça
respondeu:
- Por que é
meu desejo. Eu serei Lua Nova e vós sangrareis.
Então, um
tirou o seu sangue, despejou em um prato e o sangue se derramou,
escorreu, e o arco-íris surgiu. Arrancou-lhe os olhos e atirou-os para
cima e eles se transformaram em estrelas. O urubu-celeste veio voando,
apanhou seus cabelos com o bico e arrebatou-a para o céu.
-Agora,
minha gente, vou ser Lua. Não esqueçam, quando eu for Lua Nova e
estiverdes deitados, todas as vossas mulheres sangrarão.
A aldeia
toda quis ver a cabeça. Os habitantes abriram as casas, correram para o
terreiro, olharam a cabeça pendurada pelos cabelos, que ia para as
nuvens. E viram o arco-íris arqueando-se no céu. Escureceu. A cabeça
deitada era Lua Nova. Os olhos eram estrelas brilhantes. As mulheres
sangraram, os maridos se aproximaram e elas ficaram grávidas.
TUDO
FEITIÇO!
Rosane
Volpatto
Bibliografia:
Rã-Txa
hu-ní-ku-i - J. Capistrano de Abreu; RJ; 1914; PP. 458-474
Estórias e
Lendas dos Índios; Herbert Baldus; Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda; SP
 

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