A ORIGEM DOS PLANETAS ÁGUA E TERRA

O Princípio da Ecologia Indígena

Essa é uma lenda que foi recolhida por João Américo Peret entre os Sateré-Maué, contada pelo pajé Antônio Ferreira que afirmou estar "gravada há centenas de anos no Porantim", um remo mágico onde estão gravados registros de ancestrais míticos.

Peret acrescenta que "é interessante a semelhança entre a concepção do Dilúvio Universal, citado na Bíblia, com que está gravado no Porantin e a forma como eles viram aquele fim de mundo.

"No começo só existiam as Forças Cósmicas: Monan, o Deus! Ele criou os seres estelares que vivem espalhados no Atepê (Universo). São os corpos luminosos que só aparecem na escuridão da noite.

No universo que Deus criou existiam dois planetas especiais: o Planeta das Águas sem terra, habitado por criaturas fantásticas e o Planeta Terra, sem água, habitado pelos seres minerais.

Em tudo que Deus criava colocava os paini-pajés, com poderes mágicos para substituí-lo, além de cuidar da saúde e do bem estar dos habitantes.

Um dia, Deus resolveu unir os dois planetas. O Planeta Terra foi bebendo, bebendo o Planeta Água até vazar em fontes cristalinas, cachoeiras, igarapés, lagos e rios. As águas, ao se unirem aos seres minerais mudaram de cor e sabor, gerando os mares. A terra tornou-se macia e fértil, parindo florestas, campos e cerrados. Dessa união mágica foram surgindo novos seres com formas e vidas diferentes. E logo, Deus trouxe o Sol para dividir a noite e começou a contagem do tempo com os dias colorindo a vida.

Com a união dos planetas, os seres imortais das águas que observavam as transformações começaram a desejar partilhar da vida na terra, que para eles parecia repleta de felicidade; eles pediram aos pajés que os transformassem em seres terrestres.

Prudentes, os pajés diziam:

-"Olhem aquelas palmeiras e aquelas árvores secas! Olhem lá aquelas carcaças de animais....todos morreram. A vida lá fora é passageira, curta e enganosa...Indo para lá, vocês, como todos os seres da superfície, perderão a eternidade, vão envelhecer e morrer."

E eles responderam:

"Queremos ir assim mesmo, porque a vida lá fora pode ser curta, mas deve ser emocionante banhar-se ao sol, andar nas praias e florestas, voar na imensidão do céu; tudo parece ser alegre e maravilhoso!"

E os pajés então disseram:

"O portal dimensional está aberto para os que quiserem ir. Mas lembrem-se, será um caminho sem volta!"

Ao saírem das águas e tornarem-se mortais, esses novos habitantes ganharam formas que nem se pode imaginar e assim viveram por muitos e muitos tempos, até que evoluíram tanto que desagradaram a Deus. Então, Monan resolveu retirar o Planeta Terra de dentro do Planeta Água e o levou de volta para o céu.

Ao ser levado de volta para o cosmos, o Planeta Terra foi vazando e provocando chuvas, tempestades, um Dilúvio sem precedentes restando apenas o Planeta Água habitado pelas criaturas fantásticas e os seus paini-pajés.

As criaturas do Planeta água, que voltaram para o ventre materno, não conseguiram esquecer do Planeta Terra levado por Deus e com saudade, indagaram aos pajés:

-"Por que Deus levou o Planeta Terra de volta para o céu? Se ele o queria, porque o uniu ao Planeta Água transformado-os no Paraíso?"

Foi então que um pajé indagou:

-"Será que nós, com os poderes mágicos que Deus nos deu, não poderíamos criar um Planeta Terra, e assim criar nosso Paraíso?"

E o mais poderoso dos paini, respondeu:

"Não! Só Monan tem o poder de CRIAR alguma coisa! Nós os pajés, só temos o poder de transformar e utilizar o que Deus criou, e nada mais!"

Se fizermos uma boa pajelança provavelmente transformaríamos uma das Criaturas Fantásticas num Planeta. Será que alguém estaria interessado?"

E uma das criaturas respondeu:

"Sou uma tartaruga grande e tranqüila! Gostaria de experimentar esta transformação!"

-"Não!", respondeu o poderoso Pajé. "Bicho de casco duro, não dá para esticar muito, vai arrebentar!"

-"Eu sou peixe grande, disse outra criatura. Quem sabe posso servir?"

-"Não", respondeu de novo o pajé: "Peixe de escamas não dá para esticar, e a terra ficaria pequena que nem uma ilha".

"Bem, como vocês sabem, sou a irmã caçula das Unhamangará, das cobras grandes. Posso crescer e engordar sem para. E nós, as sucuris, somos tranqüilas. Gostaria de ser esse Planeta, tão bonito quanto o outro que Deus levou.

-"Ah! Agora poderemos fazer a grande pajelança", falou o todo poderoso paini, o pajé dos Encantados. "Temos as tintas: o jenipapo Azul ajuda a captar as energias do céu; o urucum Vermelho atrai as energias douradas do sol; a argila Branca nos traz a paz e a tranqüilidade; o açafrão Amarelo desperta-nos a espiritualidade; as penas nos dão a liberdade de voar; os maracás e os tambores são o pulsar da terra; as flautas abrem os portais transcendentais!'.

-"Então vamos começar a enfeitar nossa irmã Unhamangará com tintas e penas", sugeriu outro pajé e todos começaram a pajelança. E continuou falando:"Assim, todos saberão que a Mãe Terra na realidade é a Sucuri Emplumada, um ser vivo disponível para ser a Mãe de todos os seres que surgirão no Planeta!".

-"Eu faço as profecias", disse outro pajé. "Vou dar destinação ao futuro da irmã Unhamangará. Unhamangará, será a Mãe Terra! Vai sentir as águas encharcar seu corpo e vazar como fontes, cachoeiras, igarapés, lagos, rios e mares; vai sentir o milagre de nossas vidas brotando de você! Será praia!Será rochedo! Será floresta! Você vai alimentar e agasalhar todos os filhos que virão! Será coberta pelo manto da noite pontilhada de estrelas, de luar prateado! Vai sentir os raios dourados do sol amornar estufas, que irão gerar muitas vidas!"

"Você vai se transformar em Mãe Terra composta de seres minerais: ouro, prata, diamantes, esmeraldas, cristais, urânio, nióbio, petróleo e tantos outros minerais com seus devidos guardiões-pajés, que vão garantir sua saúde, energia vital e eterna juventude!", vaticinou outro paini.

"Nossos parentes, que serão transfigurados em seres terrestres, anfíbios e alados, vão preservar sua saúde, assim como todos aqueles que surgirão do seu ventre vão amá-la e preservá-la eternamente!"

E, fazendo a pajelança, falavam e falavam das vantagens que todos teriam com a sua transformação em Mãe Terra!

"Temos certeza de que os seus habitantes serão amáveis e compreensíveis! Vamos enviar pajés guardiões da natureza para manter o equilíbrio e punir quem ousar desobedecer às regras estabelecidas", confirmou outro pajé.

"Irmã Unhamangará, vemos que a pajelança já está dando resultado, você já está virando Terra. Mas temos uma recomendação. Quando nós estivermos finalizando o ritual você deve olhar para o Atepê, o universo. Assim, os seus novos habitantes terão vida eterna. Caso contrário, se você olhar para baixo, eles perderão a imortalidade e voltaram para você virando terra. Serão mortais, iguais aos habitantes do Planeta Terra que Deus levou de volta para o céu".

"É verdade", disse Unhamangar". "Sinto que a pajelança está transformando meu corpo em seres minerais, em terra firme. As águas correm em minhas veias como nascentes formando lagos, rios e mares. Sinto a floresta brotando pelos meus poros. Vejo o sol colorindo a vida. Percebo a lua chegando, rebocando a noite de estrelas. É tudo grandioso e divino! Mas tenho um pensamento assustador que nem tudo vai dar certo....estou assustada!"

"O que lhe atormenta irmã Unhamangará? Seu destino vai ser maravilhoso. Você será eternamente planeta! Vai continuar um ser vivo, vai parir filhos de todas as formas e cores, vai ser amada, idolatrada e preservada, ETERNAMENTE!"

"Pode ser que sim! Pode ser que não!" respondeu Unhamangará. "Mas, se não estou enganada, os seres inteligentes e civilizados de outros planetas de que temos notícias, retiraram os seres minerais do subsolo, acabaram com as florestas, poluíram as águas e contaminaram o ar, de tal forma que seus planetas morreram e vegetam no Atepê, no universo! O mesmo pode acontecer comigo e assim vou sofrer eternamente."

"Você está lembrando dos planetas Marte, Mercúrio, Vênus e tantos outros perdidos no infinito?"

"Sim", falou Unhamangará: "Quem garante que não vão mexer no meu corpo terra, e deixá-lo exaurido? E se poluírem as minas águas? E se poluírem o meu ar? Se removerem meus minérios, os guardiões dos minerais vão lançar suas forças avassaladoras e acabar com o planeta paraíso, ou seja comigo! Não posso confiar tanto assim nos habitantes que tentarão modificar tudo!" E, lembrando-se da predição da imortalidade, olhou para baixo e continuou falando:

"Meus irmãos, não se preocupem! Enquanto os meus filhos me tratarem bem, continuarei Mãe Terra, cuidando para que sejam felizes! Porém, se forem maus, mexerem onde não devem, me destruindo, voltarei a ser a Sucuri Unhamangará e mergulharei levanto todos para as profundezas do planeta Água!"

Esse é um importante aviso de sabedoria indígena, gravado no PORANTIN dos Sateré Maué há centenas ou milhares de anos que não deve ser esquecido por nós, habitantes da Mãe Terra".

PREOCUPAÇÃO COM A MÃE TERRA

Não só os índios devem se preocupar com a saúde da nossa Mãe Terra, mas também todos nós, pois dela depende o sustento que cada dia.

A depreciação pela terra, a hostilidade para com a Mãe Terra, são expressões da consciência patriarcal que hoje vivemos. O homem contemporâneo se refugiou numa concepção que considera apenas os aspectos mais óbvios e superficiais, e se tornou cético, niilista e egocêntrico.

Já o pensamento índigena é o oposto do nosso, pois é determinado por representações emocionais e afetivas, através das quais entende o mundo de forma desinteressada. O nosso índio portanto, vive em uma sociedade cujo o mito é algo vivo, muito embora misterioso e cifrado. O mundo e a Terra fala com esse homem e para compreender essa linguagem, basta conhecer seus mitos e decifrar seus símbolos. Para eles, conforme indica a lenda, o mundo não é uma massa de objetos amontoados, mas um "Cosmo Vivo", articulado e significativo, que deve ser cuidado para ser preservado.

De acordo com nosso índios, nada na Natureza é destituída de função e de uso. Tudo tem seu propósito valioso juntamente com seus guardiães. Todas essas funções são governados pela missão ou diretriz global da Vida. Se a humanidade estiver recebendo de volta energias de morte ou enfermidade, não deve culpar a natureza, mas olhar para dentro de si mesma e verificar quais toxinas contribuíram para levar a natureza a responder de tal modo.

A diretriz da natureza consiste em restaurar a vida para o bem maior de todos!

 

Texto pesquisado e desenvolvido por ROSANE VOLPATTO

Bibliografia consultada:

Revista Parintins - Cultura e Folclore N 2; 06/2000; págs. 122 a 127; "A Origem dos Planetas Água e Terra" de João Américo Peret