LENDA DA SAPUCAIA- ROCA (OU SAPUCAIA-OROCA)

Sapucaia-roca era uma cidade indígena que foi coberta pelas águas. Conta a lenda, que era uma cidade fantástica e completamente diferente de todas as aldeias construídas pelos índios.

Muito rica, com casas e palácios feitos de ouro. As ruas tinham sido cobertas de pedras preciosas e seu moradores também estavam acostumados a andarem ricamente vestidos e davam festas que duravam dias e dias. As melhores comidas e bebidas eram servidas nessas comemorações.

Com o passar do tempo, esses nativos não faziam outra coisa a não ser dar festas. Tupã, entretanto, começou a não gostar daquilo. Andava perturbado com que acontecia, pois os índios não trabalhavam mais. Sendo ricos, compravam o que precisavam de seus vizinhos.

Tupã enviou-lhes diversos avisos, mas a beberagem era tanta que eles nem tomaram conhecimento. Continuaram a levar a vida em festas e divertimentos.

Tupã aborrece-se e fez cair uma chuva durante dias. A água começou a subir sem parar. Os indígenas poderiam ter fugido, mas não quiseram abandonar suas riquezas. A cidade acabou desaparecendo nas águas.

Entretanto, Tupã, que é um pai bondoso, não deixou que seus filhos morressem. Sendo assim, continuaram a viver dentro da água. Quem passa por perto do local, diz ouvir galos cantadores dentro do rio. São os espíritos protetores dos índios alertando os habitantes da nova povoação que surgiu nas proximidades para que também não sejam castigados. Daí o nome Sapucaia-Oroca. Significa "galinheiro".

Essa lenda foi contada pela primeira vez pelo Cônego Francisco Bernardino de Souza em "Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas", em 1873 e recolhida por Câmara Cascudo em seu livro "Lendas Brasileiras"" em 2000. Essa versão nos conta:

"Sapucaia-Roca é uma pequena povoação à margem do rio Madeira.
Pouco abaixo do lugar em que acha assentada, referem os índios que existiu outrora uma outra povoação, muito maior do que esta, e que um dia desapareceu da superfície da terra, sepultando-se nas profundidades do rio.

É que os Muras, que então a habitavam, levavam a vida desordenada e má, e nas festas, que em honra de Tupana celebravam, entregavam-se a danças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, que faziam chorar de dor aos angaturamas, que eram os espíritos protetores, que por eles velavam.


Por vezes os velhos e inspirados pajés, sabedores dos segredos de Tupana, haviam-nos advertido de que tremendo castigo os ameaçava, se não rompessem com a prática de tão criminosas abominações.


Mas cegos e surdos, os Muras não os viam, nem os ouviam. E pois um dia, em meio das festas e das danças e quando mais quente fervia a orgia, tremeu de súbito a terra e na voragem das águas, que se erguiam, desapareceu a povoação.
As altas barrancas que ainda hoje ali se vêem, atestam a profundidade do abismo em que foi arrojada a povoação e os réprobos...


Depois, muitos anos depois, foi que começou a surgir a atual povoação, que ainda não pode
atingir ao grau de esplendor da fora submergida.
Foram de novo habitá-la os Muras; mas em breve, por entre a escuridão da noite começaram a ouvir, transidos de medo, como o cantar sonoro de galos, que incessante se erguia do fundo das águas.


Consultando os pajés, que perscrutavam os segredos do destino, declaram estes que aquele cantar de galos, ouvido em horas mortas da noite, provinha daqueles mesmos angaturamas, que deploraram outrora a misérrima sorte da povoação submergida e que, sempre protetores dos filhos dos Muras, serviam-se do canto despertador dos galos da Sapucaia-Roca submergida, para recordarem o tremendo castigo por que passaram seus maiores e desviarem a nova geração do perigo de sorte igual.
É este o fato que deu origem ao nome da povoação: Sapucaia-Roca."

Essa lenda é claramente reflexo do ensinamento jesuíta que condenava a prática das festas indígenas, por acreditarem ser atividades pagãs e condenáveis aos olhos cristãos.

O nosso indígena sempre foi um homem alegre e festeiro e sempre viveu em feliz comunhão com a natureza. Foi por intermédio de sua cultura que os povos indígenas construíram o seu mundo, suas evidências, verdades, convicções profundas, comportamentos, signos e significados, sua origem e seu destino. Enfim, produziram sua religião.

Como cada povo que habita perto de um rio construiu um determinado tipo de canoa para atravessá-lo, assim também os índios "construíram" sua religião para atravessar o rio do tempo e da história e para viajar até o além.

A rigor, não cabia aos jesuítas criticar e muito menos condenar suas práticas e modos de vida. Todas as culturas merecem o nosso respeito. Além disso, nenhuma cultura pode ser qualificada de superior à outra. Um povo feliz, que vive nos confins da Amazônia, sem TV, internet ou avião, não tem uma cultura inferior àquela que vive nas grandes cidades, onde a fome a fartura dividem ricos e pobres em uma mesma rua. Portanto quando alguém fala de culturas superiores e inferiores revela sempre uma forte dose de etnocentrismo.

Todos os povos têm cultura e todas as pessoas são cultas. A vida de cada povo está abraçada e guiada por dois braços: pela cultura e pela história. Pela cultura e pela história cada povo constrói sua identidade e sua alteridade.

Está em tempo de compreendermos que nossos índios possuem sua própria identidade e cultura que deve ser respeitada e preservada.

Texto pesquisado e desenvolvido por

ROSANE VOLPATTO