O APARECIMENTO DE ÑAMANDU


"Nosso pai, o último, nosso pai, o primeiro,

fez com que seu próprio corpo surgisse

da noite originária.

 

A divina planta dos pés,

o pequeno traseiro redondo:

no coração da noite originária

ele os desdobra, desdobrando-se.

 

Divino espelho do saber das coisas,

compreensão divina de toda coisa,

divinas palmas das mãos com a vara-insigna,

palmas divinas de ramagens floridas:

ele os desdobra, desdobrando a si mesmo,

Ñamandu, no coração da noite originária.

 

No cimo da cabeça divina

as flores, as plumas que a coroam,

são gotas de orvalho.

Entre as flores, entre as plumas da coroa divina,

o pássaro originário, Maino, o colibri,

esvoaça, adeja.

 

Nosso pai primeiro,

seu corpo divino, ele o desdobra

em seu próprio desdobramento

no coração do vento originário.

A futura morada terrena,

ele não a sabe ainda por si mesmo;

a futura estada celeste, a terra futura,

elas que foram desde a origem,

ele não as sabe ainda por si mesmo:

Maino faz então com que sua boca seja fresca,

Maino, alimentador divino de Ñamandu.

 

Nosso pai primeiro, Ñamandu,

ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

sua futura morada celeste:

a noite, então, ele não a vê,

e todavia o sol não existe.

Pois é em seu coração luminoso que ele se desdobra,

em seu próprio desdobramento;

do divino saber das coisas,

Ñamandu faz um sol.

 

Ñamandu, pai verdadeiro primeiro,

habita o coração do vento originário;

e, aí onde ela repousa,

Urukure'a, a coruja, faz com que existam as trevas:

ela faz com que já se pressinta o espaço tenebroso.

 

Ñamandu, pai verdadeiro primeiro,

ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

sua futura morada celeste;

ele ainda não fez com que se desdobre,

em seu próprio desdobramento,

a terra primitiva:

ele habita o coração do vento originário.

 

O vento originário no coração do qual nosso pai

de novo se deixa unir cada vez que volta

o tempo originário,

cada vez que volta o tempo originário.

Terminado o tempo originário,

quando a árvore tajy está florida,

então o vento se converte em tempo novo:

ei-los aqui já os ventos novos,

o tempo novo,

o tempo novo das coisas não-mortais."

 

 

A bela poesia descreve o nascimento do Deus Ñamandu, que  cria a si mesmo em meio as trevas originárias, após sucessivos desdobramentos e momentos.

 

O corpo de Ñamandu emerge como modelo original da natureza: se firma em suas raízes, estende seus braços como ramos, constrói sua copa com flores e plumas e se ergue como uma árvore em postura celestial, como deve permanecer toda a criatura divina.

Em sua divina sabedoria, idealizou seus órgãos para tudo ver, tudo ouvir, tudo saber. Depois criou sua vara-insígnia, símbolo do qual flui seu poder de criação e engendra as chamas divinas que aquece os corações, dá nascimento as paixões, outorgando força aos sentimentos.

 

Ao término da criação de seu próprio corpo, Ñamandu faz com que uma luz resplandeça em seu peito. Essa luz ilumina e confere vida as trevas originais. O Pai Primeiro, existe agora como um ser divino iluminado pela sua sabedoria e ergue-se assumindo a forma que daria posteriormente aos seres humanos.

 

O colibri personagem que aparece no poema, seria um dos desdobramentos do Criador para seu auto-sustento. Em outros poemas que já pesquisei, o colibri claramente aparece como o próprio Ñamandu.

 

Já a coruja é a "guardiã da casa escura da terra" (da noite). Associada às forças ctônicas, é um avatar da noite, da chuva e da tempestade.

 

A coruja ainda, simboliza o dom da clarividência dos adivinhos, sendo assim, fica claro a correspondência do Deus Criador com esta ave, pois Ele, pelo fato de ser o Primeiro, tudo vê, tudo cria e tudo sabe.

 

A imagem da Criação retorna ciclicamente sobre a terra com o curso das estações.

 

 

Para os índios guarani, o solo da terra não é tão somente um recurso de produção, mas é ainda um cenário de vida sentimental-religiosa. A terra não só produz alimento para o povo, mas também possui bens simbólicos que devem ser cantados e dançados.

Hoje, este canto-dança, que ritualiza a busca do "Terra sem Mal", representa uma floresta simbólica onde o índio resiste e preserva sua identidade.

 

O nosso guarani é também possuidor de conhecimentos apreciáveis sobre botânica, conhecendo uma grande variedade de ervas medicinais, cujas propriedades terapêuticas sabe aproveitar-se devidamente.

 

Todas as religiões buscam dar respostas a angústia do homem, mas é nós mesmos que devemos construir nossa própria felicidade. Nossos corações endurecerem quando nos distanciamos da natureza e, podemos até perder o rumo e não encontrarmos mais uma maneira divina de definir o verdadeiro sentido da vida.

 

 

 

Texto pesquisado e desenvolvido por

 

ROSANE VOLPATTO

 

 

 
 



 


 





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