
Nos primórdios dos tempos, o urubu-rei foi dono do fogo. Por
isso, os Tembés secavam a carne expondo-a ao calor do sol. Então resolveram
roubar o fogo do urubu-rei.
Começaram por matar uma anta. Deixaram-na estendida no chão
e, depois de três dias, o bicho estava podre, bulindo de vermes.

Vendo a carniça lá embaixo, o urubu-rei desceu acompanhado
de seus parentes. Para melhor se banquetearem, despiram a vestimentas de
penas, assumindo a forma de gente. Tinham trazido um tição aceso e com ele
fizeram uma grande fogueira. Cataram os vermes, os envolveram em folhas do
mato e assaram.

Os Tembé que se mantinham escondidos, à espreita, tocaram
para lá. Mas os urubus bateram asas e levaram consigo o fogo para um lugar
seguro. Assim, os índios perderam o trabalho de tantos dias. A seguir, fizeram
uma tocaia ao pé da carniça e um velho pajé aí se escondeu.
Os urubús voltaram àquele lugar e fizeram seu fogo, desta
vez bem próximo da tocaia.
- Quando eu fugir, levarei comigo um tição acesso!, disse o
pajé consigo mesmo.
Quando os urubus despiram sua vestimenta de penas, viraram
homens novamente e se puseram a assar os vermes, ele deu um pulo para frente e
os bichos ficaram espavoridos. Correram para suas vestes de penas e começaram
a vestir-se atabalhoadamente. O velho aproveitou-se da confusão, pegou num
tição aceso e fugiu. Os pássaros juntaram o resto do fogo e voaram, levando-o
consigo.

Então, o pajé ateou fogo em todas as árvores com as quais
hoje se faz fogo e que são: urucuíva, cuatipuruiva, ivira e muitas outras.

Lenda contada por Curt Nimuendaju Unkel em "Mitos dos
índios Tembé do Pará e Maranhão".
Em diversas tradições míticas, o
herói rouba o fogo dos deuses. Embora seja um ato de transformação de vida,
também embute certa dose de arrependimento e culpa por desafiar o domínio da
divindade ou, na visão psicológica, dos pais. Na interpretação de um sonho,
obter o fogo pode simbolizar um novo nível de compreensão e maturidade,
deixando o velho para trás e abarcando o orgulho, o medo e a culpa que marcam
o processo de passagem.

O URUBÚ
O urubu pertence a família dos vulturides e possuem asas,
cauda e plumagem toda preta; a cabeça nua e o colo são pardos escuros; desde o
bico passando pelo vértice até a nuca, estendem-se verrugas em regulares
distâncias. Dos seus sentidos são mais apurados os da visão e do olfato.
Qualquer observador, por certo, já terá tido a ocasião de admirar-lhes a
rapidez com que descobrem estes guardas sanitários, um animal abatido. Para
estes consumados voadores parece que não existem distâncias. Descem em número
de vinte ou mais sobre a morta criatura e sacam-lhe primeiro os olhos. Se
ainda não está desenvolvida a putrefação, conservam-se sobre uma árvore
vizinha ou em postes, esperando até que os gases da decomposição intumecem o
cadáver e afinal o rebentam. Então é o momento desejado e t0dos se atiram sobre
o cadáver. Cada um pega um pedaço dos intestinos que devora. Costumam assim
escavar os cadáveres antes de atacar o exterior.
Em
todos seus movimentos não se ouve um só tom, são como mudos. Tanto mais
notável é o sussuro que produz o urubú com as asas voando, observa-se o
zunido, ao menos nos momentos em que nos fica verticalmente sobre a cabeça.

O URUBÚ NA FÁBULA BRASILEIRA

Há uma antiga variante da clássica fábula do corvo (ou
urubú) e vem referida por João Ribeiro na Revista de Ciências e Letras (1926).
Segundo Efoso, ela é uma lição à pessoas insensatas, representada pelo vaidoso
corvo. É esta a moralidade e o fim que visa a fábula. Entendiam porém, alguns,
que havia nela uma lacuna, que a adulação da raposa ficou impune. Mais correta
é a variante brasileira, em que a aludida lacuna parece hábilmente preenchida.
Segundo uma redação colhida no Ceará, reza assim:
Um urubú farto, descansa em um galho e um cachorro, famélico
fareja o bezerro morto, coberto de moscardos.

O cachorro humilde e
bajulador:
- Boa tarde, seu
doutô! Como vai a senhoria?
Pela sua cortesia
Deixa-me roer um
osso?
O urubú cheio de si,
pelo tratamento ilustre de doutor:
- Com licença do
doutô
Pode comer sem
sobroço.
O cachorro comeu,
repletou-se; depois mufando da prosapia do urubú:
- Foi coisa que eu
nunca vi,
Negro de chapéu de
sol!
Para que anda este
tição
Se resguardando do
Sol?
Com dignidade e
altivez, rosnou-lhe o urubú;
- Vá-se embora,
malcriado
Cabra sem educação
Bem entendido é o
ditado:
"Cachorro não tem
razão."

Aqui termina a
fábula, com a moralidade de que o urubú foi vítima da bajulação perfeita. Foi
punida a lisonja e não menos a ingratidão do cachorro.
O povo condena a
vaidade, mas ainda mais a vileza da adulação.
Texto pesquisado e
desenvolvido por
Rosane Volpatto

Bibliografia
Mitos dos
Índios Tembé do Pará e Maranhão - Curt Nimuendaju Unkel; Sociologia, Vol XIII,
n.3, SP, p. 274
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