A base
da sociedade celta é a família no sentido extenso da palavra, comparável ao que
foi observado nas cidades gregas e romanas. Essa família se chama "fine" entre
os antigos gaélicos, e se observará que dito nome procede da mesma raiz que "Gwynedd",
nome do noroeste do País de Gales, e da palavra "veneti", nome do povo gaulês
que habitava o país de Vannes, Gwened em bretão.
Quando
a família está completa, na Irlanda, toma o nome de "deirbhfine", e compreende
quatro gerações, do pai, que recebe o nome de "senn-fine" (cabeça ou chefe da
família), aos filhos do sobrinho. Mas além desse parentesco, se produz uma
migração e se constitui uma nova família, com uma participação obrigatória dos
bens anteriormente comuns.
Muitos
"fine" se agrupam em uma tribo, a "tuath", que é a base da célula política da
Irlanda. A "tuath" tem a particularidade de ser auto-suficiente: possui sua
hierarquia social bem determinada, que vai do chefe ao rei (ri), os escravos, os
bens comunitários, seus regulamento e inclusive seus Deuses.
A
conseqüência dessa quase autarquia da "tuath" no plano da história dos celtas é
bastante destacável, pois explica a impossibilidade da unificação política. Os
celtas não sentiram jamais a necessidade de agrupar-se em amplas e complexas
políticas, já que a "tuath" era um todo, podia regular-se por si mesmo.
Os
celtas não tinham noção de estado como os romanos, para os quais, a noção de
estado, quase totalitário, representava a base de todo seu pensamento e de suas
atividades. Por isso, no plano prático, isso conduziu os celtas à catástrofes,
entre as quais foi o seu desaparecimento do jogo político europeu.
Na
vasta compilação chamada "Livro dos Direitos", escrita por ordem de Cormac Mac
Cuilennain, rei-bispo de Cashel, em 903, compreendemos facilmente a origem
desses costumes. Todo sucedeu como se os gaélicos houvessem sonhado com uma
sociedade ideal e houvessem tentado aplicá-la em uma terra pastoril, pouco
propícia a cultura. Entretanto, embora a sociedade gaélica fosse pastoril, os
gaélicos são sedentários, solidamente implantados em diferentes regiões da
Irlanda. Só nas fronteiras existiam "tuatha" móveis.
A
diferença da sociedade romana baseada na possessão de terra por um ou por muitos
titulares, a sociedade celta, sobretudo entre os gaélicos, se baseia na
possessão comunitária da terra, indicando uma organização totalmente organizada
para a criação de rebanhos.Como os germanos e os latinos, a moeda mais antiga
era o gado, considerado como a única base da riqueza.
Por
isso, o modelo de contrato feudal, que encontramos na Irlanda é um contrato de
gado. Teoricamente, a terra é propriedade do estado, propriedade comum e
indivisível. O rei é o magistrado eleito pela comunidade, encarregado pela
administração e que pode autorizar um membro qualquer da "tuath" a trabalhar com
vistas ao bem comum, ou ocupar determinado território para estabelecer sua
morada ou plantar a terra. Porém, ao fazê-lo, o rei não atua como um soberano
feudal. Porém, a maioria das vezes, não é a terra, ou a simples autorização de
estabelecer-se em um território, que recebe o membro da "tuath", e sim cabeças
de gado. Sobre ele repousa o sistema feudal celta. O tomador recebe do
arrendador uma ou muitas cabeças de gado e contrai assim, obrigações com esse
último, obrigações que um contrato firmado ante um druida (ou sacerdote na época
cristã) estipulado com precisão.

Todos
aqueles que recebiam gado eram pois, "ipso facto", englobados na hierarquia
social, em graus diversos segundo a importância de cada um. Existiam as classes
dos servos e dos homens livres. Os homens livres compreendiam desde o rei até o
mais humilde camponês. Servos e homens livres constituíam, em caso de contrato
de gado, os "ambactoi", cujo sentido é "servidores".
Esse
contrato de gado, que se manteve por muito tempo na Irlanda, explica o por quê
as mulheres, que podiam possuir rebanhos, não estavam excluídas e gozavam, pois,
de uma situação diferente das mulheres das sociedades baseadas no direito
exclusivo da terra.
-*-
A
MULHER NA SOCIEDADE CELTA (Aspecto Jurídico e Social)

Na
sociedade celta, segundo um grande número de testemunhos, a mulher tinha o
direito de escolher seu marido e portanto, não poderia casar-se sem seu próprio
consentimento.
Quando
havia uma jovem na idade de casar-se, se organizava uma grande festa, para qual
eram convidados todos os jovens. A moça elegia seu marido, oferecendo-lhe água
para lavar as mãos. Segundo as mais antigas leis galas, as de Gwynedd, as jovens
podiam casar-se com a idade de 12 anos.
Muito
embora, essa eleição por parte da jovem, não quer dizer que seus parentes
estejam ausentes no contrato de casamento. Não há o que duvidar que a célula
base é a família. Existe, portanto, um acordo entre famílias e ele conduz a um
casamento que será exclusivamente de regime dotal, seja qual for a classe social
que pertençam os nubentes.
Todo
homem celta que desejava casar-se, deveria pagar uma certa soma, e a mulher, por
sua vez, também deveria dar o mesmo montante. Todos os anos, se faziam as contas
da fortuna das partes. Se guardava os frutos conseguidos, e o marido
superveniente desfrutará da parte que é sua, aumentado com tudo que conseguir
posteriormente. Porém, no caso do desaparecimento do marido, a mulher não herda
do falecido, toma tão somente a sua parte e adicionando os frutos em comum. O
mesmo ocorre se o homem ficar viúvo.
O
homem que, na Irlanda, deseja casar-se com uma mulher, deve abonar
obrigatoriamente um direito de compra, o "coibche". Esse "coibche" está
destinado ao pai da prometida se essa se casar pela primeira vez. Porém se sua
filha se casa pela segunda vez, o pai não receberá mais do que dois terços da
soma, e o terço restante irá para a filha. Se essa se cassasse pela terceira
vez, o pai ficaria com a metade e assim sucessivamente. Ao vigésimo primeiro
casamento da filha, o direito do pai se extingue. Quando o pai está morto, é o
irmão, em princípio, o mais velho, que tem direito a metade da compra da
prometida pelo futuro marido.
Porém,
apesar da compra, desse "coibche", a mulher irlandesa não entrava na família do
marido, como acontecia com a mulher romana. A mulher casada romana, por "coemptio",
caía em "manu amriti", pertencia a família do marido e deixava de ser
proprietária. A mulher irlandesa continua possuindo seus bens, entretanto, se
ficar viúva, não era ela que recebia a compensação devida e sim a família do
marido. Se ela, entretanto, volta a casar, se repartirá o novo "coibche" com sua
própria família. Se afirma, desse modo, por via legal, uma independência grande
da mulher casada.

A
mulher irlandesa levava para o casamento seu dote, "tinnscra", que era um
conjunto de obséquios que lhe outorgam seus parentes. Dito dote é propriedade
pessoal, pois no caso de dissolução do casamento, por divórcio ou desejo
conjugal, ela o recobra integralmente, ao mesmo tempo que sua liberdade.
No
País de Gales, o método seguido era o mesmo. O homem satisfazia o preço de
compra da mulher, o "gobyr", que era equivalente ao "coibche". A mulher leva o
dote, "argweddy, que era igualmente pessoal. Porém o marido, ou a família desse,
deveria pagar por outra parte o "cowyll", ou seja, o preço da virgindade.
Deve-se dizer que esse "cowyll" se pagava antes da primeira noite, enquanto que
em Roma e entre os germanos, não se outorgava senão no dia seguinte a noite das
bodas, de onde deriva seu nome técnico de "morgengabe". Essa diferença de dia de
pagamento, demonstra o respeito que os celtas tinham pela mulher, enquanto que
os romanos e germanos e, a sua retaguarda, os cristãos, fizeram dela um ser
hipócrita e enganosa.
O
divórcio entre os celtas era muito comum, inclusive na época cristã. Ele se
deve, em primeiro lugar, justamente porque o casamento não tinha caráter
sagrado, tratava-se tão somente de um contrato submetido à cláusulas: se essas
cláusulas não fossem respeitadas, o contrato seria anulado.
Não
eram realizadas grandes cerimônias para um casamento. A literatura gaulesa e
irlandesa não mencionam mais do que um festim para consumar o casamento. O
matrimônio celta aparece como uma espécie de união livre protegida pelas leis e
sempre possível de se romper. E, no divórcio celta, o homem e a mulher estão
situados em um plano de estrita igualdade.
Uma
segunda razão que explica a facilidade do divórcio e a relativa fragilidade do
casamento, é o os celtas admitiam a monogamia, a poligamia e inclusive a
poliandria (matrimônio coletivo). Foi César que afirmou que certas tribos bretãs
praticavam uma espécie de poliandria (matrimônio coletivo).
-*-
O que
podemos assegurar, é que existiu entre os celtas a poligamia, pois em uma época
de sua história, encontramos a instituição do concubinato legal. Todo homem,
inclusive o casado, podia ter uma ou mais concubinas. A origem se encontra na
presença de um verdadeiro contrato, mediante o qual o homem compra a concubina,
a "ben urnadna" (esposa por contrato). Porém, o mais importante é que a compra
tem a validade de um ano, podendo renovar-se o contrato só no final do prazo.
Essa cláusula denota mais uma vez a preocupação dos legisladores celtas por
salvaguardar a liberdade da mulher: a doutrina do "habeas corpus",
característica do direito anglo-saxão, parece aplicar-se nesse âmbito concreto.
Se o contrato durasse um ano e um dia, a concubina, ao concluir o período,
pertenceria ao homem, em virtude do usucapião: o homem teria direita a revender
a concubina e de ficar com o dinheiro da dita venda, em detrimento da concubina
e dos pais desta. Desse modo, a concubina recuperava obrigatoriamente a
liberdade.
Devemos ainda acrescentar, que o concubinato, ou matrimônio anual, na Irlanda
expirava em um dia que correspondia a uma grande festa pagã.
De
qualquer forma, o concubinato legal do homem não prejudicava em nada os direitos
da esposa legítima, que era a única que recebia o título de esposa e podia
mandar na concubina ou concubinas de seu marido que a ajudavam nas tarefas
domésticas. Por outro lado, a esposa poderia impedir a presença de uma concubina
em sua residência familiar. Se o marido passasse por cima dela, sempre podia
divorciar-se. Segundo a lenda da Santa Brigida de Kildare, podemos citar o caso
do druida Dubtach, que havia comprado uma concubina e a havia deixado grávida. A
esposa legítima que não admitiu o feito, ameaçou divorciar-se se Dubtach não se
separasse da concubina. Ao divorciar-se, ela recuperava não só seu "coibtche",
preço de compra, como também seu pecúlio, seu "tinnscra". A ameaça fez com que o
druida repensasse seu ato e acabou se separando de sua concubina para conservar
sua legítima esposa, juntamente com os bens que essa possuía.
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COM QUEM FICA O PODER FAMILIAR?

Na
sociedade celta, o homem era o cabeça da família, mas nem sempre é a cabeça do
casal. As leis irlandesas apresentam três aspectos bem distintos em relação à
situação matrimonial e, segundo cada caso, o papel da mulher ou do homem podem
trocar completamente. Quando a esposa, a "cetmunter", tem a mesma fortuna e o
mesmo nascimento do marido, estará em um plano de completa igualdade. Pode
estabelecer, por sua própria autoridade, qualquer contrato que presuma
vantajoso. O consentimento do marido só é necessário em caso de um contrato ser
considerado desfavorável. Do mesmo modo, a mulher tem o direito de exigir a
anulação de todos os contratos desfavoráveis estabelecidos por seu marido e que
comprometa sua própria fortuna.
Quando
a esposa é inferior pela classe que ocupa, e, sobretudo, se sua fortuna é
inferior a de seu marido, seus direitos se reduzem muito. Aqui explica-se a
origem da famosa disputa da rainha Maeve e do rei Ailill, que deu início a
grande narração "Tain Bo Cualnge", disputa que gira em torno da apreciação de
suas respectivas fortunas, e que têm como conseqüência uma guerra inexplicável
por Maeve para apropriar-se de um toro que valia mais que o touro de seu marido.
Já se,
a mulher possui uma fortuna maior que seu marido, ela é a cabeça da família, sem
contestação possível. A autoridade do marido é quase nula. Recebe o nome de "fer
fognama", ou seja, "homem serviçal", ou também "fer for ban thincur", "homem
embaixo do poder de uma mulher". Em numerosas narrações épicas, é a situação do
rei Ailill, que não pode dizer absolutamente nada contra as decisões da rainha
Maeve. Tal estado das coisas é uma situação privilegiada para a mulher casada,
não só dona de seu próprio destino, como também do destino do homem. Sem dúvida
alguma, se trata da reminiscência de um estado social anterior, onde a mulher
desempenhava na vida familiar e política um papel bem mais importante (época do
matriarcado).
A
reminiscência desse matriarcado primitivo, aparece em um velho costume que
encontramos na literatura irlandesa e gaulesa: nomear os heróis segundo o nome
de sua mãe e não de seu pai. Sendo assim, o rei Conchobar também recebeu o nome
de "filho de Ness"; Gwydyon e Ariannrod são "o filho e a filha de Don";
Setanta-Cuchulainn é o "filho de Dechtire. Parece que aí há uma sucessão
matrilineal, que os narradores não puderam suprimir.
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OUTRAS IMPORTANTES ATIVIDADES
FEMININAS

Além
disso, as mulheres casadas tinham acesso a diversas funções. Segundo
testemunhos, elas participavam na celebração da missa (período cristão), prática
denunciada pelos bispos continentais. Existiam também, mosteiros mistos, de
homens e mulheres, como o fundado em Kildare pela célebre santa Brigida sobre o
templo pagão, onde as mulheres vigiavam um fogo que não podia apagar-se, algo
que recorda as Vestais romanas.
Mas,
as mulheres celtas não se limitavam somente a essas funções quase sacerdotais,
mas desempenhavam ainda, um importante papel na educação das crianças e dos
jovens. Sabemos que existiu um costume bastante singular, qualificado pelo nome
de "fosterage": que se tratava de enviar as crianças para fora de sua família
natural, à casa de um "fosterer" que se encarregaria de alimentá-lo e criá-lo,
até ao ponto que os laços que unem o pai nutridor e o filho adotivo, sejam tão
fortes como os entre o verdadeiro pai e o filho. Entretanto, não só criavam
vínculos entre a criança e os pais adotivos, mas como também entre todos aqueles
que se criavam juntos.

Na
literatura irlandesa existem inumeráveis exemplos desse tipo de situação, em que
irmãos de leite e irmãs de leite estão ligados entre eles por obrigações mais
importantes do que as provocadas pela fraternidade natural.
Mas
tão somente a instituição "fosterage", não basta para a educação de um jovem
guerreiro. Ao entrar para a adolescência, deveria deixar seus pais adotivos e
iniciar-se nos ofícios das armas junto com mulheres guerreiras extremamente
misteriosas, estabelecidas no norte da ilha da Bretanha, no territórios dos
pictos.

Na
Irlanda, a narração da "A Educação de Cuchulainn" e da "Infância de Finn", são
as mais significativas sobre esse ponto de vista. No País de Gales, a narração
de Peredur, arquétipo da "Busca do Graal", proporciona detalhes arcaicos
referentes a esse costume.
Essa
tradição literária, coincide com a visão que tinham os autores da antiguidade
clássica das robustas gaulesas, sempre dispostas ajudar seus maridos nas guerras
ou em disputas. Segundo Diodoro de Sicilia (V, 32): "entre os gauleses, as
mulheres são quase da mesma estatura que os homens, com os quais rivalizam em
coragem".
Outro
aspecto dessas mulheres guerreiras, educadoras, militares e bruxas, é o de
iniciadora sexuais. Essa curiosa instituição guerreira, aparece também como uma
espécie de prostituição mais ou menos sagrada. É a concreta indicação, mais uma
vez, que a liberdade sexual entre os celtas era muito grande, pois tanto as leis
como os textos literários não marcados pelo Cristianismo, não existiam tabus
sexuais.
A
fragilidade do casamento é uma prova absoluta disso. A prática do concubinato
também. Qualquer homem, casado ou não, podia contratar um desses famosos
matrimônios anuais. A mulher que aceitava esse tipo de situação, não sofria
nenhum constrangimento perante à sociedade, bem ao contrário. A sociedade celta,
antes do Cristianismo, jamais conheceu a noção de pecado: com mais razão não a
encontrou na sexualidade.
É
justamente a liberdade sexual que explica em grande parte a importância da
Mulher na sociedade celta. Ao não ser considerada um objeto de "pecado" e não
ser um ser "frágil" em uma sociedade mais pastoril e guerreira do que agrícola,
só podia ter salvaguardado um grande parte o papel que havia ocupado em épocas
posteriores.
A
sociedade celta se encontrava na metade do caminho entre as sociedades do tipo
"paternalistas", agrícolas e estruturadas segundo a posse da terra por parte do
pai de família, e as sociedades chamadas de "matriarcado", nas quais as mães, ou
a mulher em geral, segue sendo o vínculo fundamental da família e o símbolo da
fertilidade.
A
mulher celta, tanto a irlandesa como a bretã, desfrutavam de sua liberdade,
desfrutavam de direitos, conseqüência de sua classe social ou de sua fortuna
pessoal, que lhe permitia converter-se em chefe de família, que podia reinar,
que podia ser profetisa, maga, educadora, que podia casar-se ou permanecer
"virgem", que podia herdar uma parte de seus bens de seu pai e de sua mãe.
Acho
que ainda nos serão necessários alguns séculos para que as mulheres recuperem
todos esses direitos e privilégios perdidos por nossas ancestrais. Por enquanto,
só nos resta estudar sobre a imagem ideal da mulher, tal qual como ela já foi
imaginada não só pelas mulheres, mas também pelos homens.
MAPA DO
TERRITÓRIO E EXPANSÃO CELTA NA EUROPA (antes da conquista romana)

NOMES DAS TRIBOS CELTAS
MAPA DA IRLANDA

Texto pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO
Bibliografia:
La Mujer Celta - Mito y Sociologia -
Jean Markale
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